quinta-feira, 27 de abril de 2017












Carrego nos dedos – onde as palavras crescem 
o ímpeto de voar nas névoas encalhadas,
serenos verbos num rio cristalino.
Carrego nas sombras do vento
as chuvas adormecidas no porão,
as melodias das colinas verdes
e as memórias do mosto de Setembro.
No manto frio dos espaços lentos
e nos brancos de cal, carrego
o horizonte anil sem princípio,
o musgo nas ameias dos abraços,
pedras e silêncios nas velhas portadas.
No mar raso de um sopro
e na nortada que assobia, carrego
a luz que chora estendida
na corda da alma e no casulo
transparente da dor e do vazio.
Carrego rios de saudade no céu do peito,
o cheiro a acre nas ruínas da lua,
as cores com que acorda a terra lavrada
e os aromas das folhas soltas.
Carrego o fogo dentro da pele
e a névoa encalhada das dobras do corpo
nas nuvens sombrias da noite.
E no peso do cordel do tempo
nas horas em que existo,
a escuridão reforma-se.
Carrego… e construo-me!


[ © António Carlos Santos ]


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 26 de abril de 2017





Num céu convulso, sem estrelas
ecoa a poeira de gritos surdos
e o naufrágio vestido de cravos vermelhos.
Onde estão agora os teus passos
que a dicção do vento corre cansada para o colapso?
Estarão para além das nuvens
que gritam em silêncio o fim da linha?
Onde estão agora os teus passos?
Habitam os vendavais nas saias do vento,
a aurora boreal no rodopio do tempo,
ou a seiva da copa das árvores nos dias da ceifa florida ?
Já não estás aqui!
Já não moras cá…
Onde estão agora os teus passos frágeis?
O último comboio carrega… lentas lágrimas de pó.

[ © António Carlos Santos ]
__________________________________
Poema: " Frágeis (lágrimas de pó) "
de: © António Carlos Santos
iN: Antologia "Salgueiro Maia - La libertad no es una utopía"

Editora: Uliputienses/Espanha



Fonte: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 25 de abril de 2017




By Evelyn Brent ,1920




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/





Guarda estes versos que escrevi chorando,
Como um alívio a minha saudade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.

Machado de Assis



https://www.pinterest.pt/cinafraga/


By Gertrude Hoffman, 1917


segunda-feira, 24 de abril de 2017




Passei o Dia 
Ouvindo o que o Mar Dizia
Eu hontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Fallou-me do seu destino,
Do seu fado...
Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Poz-se a cantar
Um canto molhádo e lindo.
O seu halito perfuma,
E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.
Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...
Elle afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...
Ao longe o Sol na agonia
De rôxo as aguas tingia.
«Voz do mar, mysteriosa;
Voz do amôr e da verdade!
- Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...»
. . . . . . . . . . . . . . . .
E os poetas a cantar
São echos da voz do mar!
António Botto, in 'Canções'



Fonte: http://www.citador.pt/

https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 23 de abril de 2017




(...)
Quantos dias se passam sem tu apareceres.
E às vezes penso é bom que assim seja,
para eu aprender a estar só.
Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro
e eu quase sufoco da tua presença.
Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro
e digo-te vai-te, vai-te embora.
Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz.
E digo-te não vás. Fica. Para sempre.
Há em mim uma luta entre o desejo de que
te esqueça e o de endoidecer contigo.


Vergílio Ferreira,
in "Cartas a Sandra".




https://www.pinterest.pt/cinafraga/