sexta-feira, 29 de dezembro de 2017




Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.

Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.

Rainer Maria Rilke


(Tradução: Paulo Plínio Abreu)


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017




O Pássaro Cativo


Armas, num galho de árvore, o alçapão.
E, em breve, uma avezinha descuidada, batendo as asas cai na escravidão.

Dás-lhe então, por esplêndida morada, a gaiola dourada.
Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos, e tudo.

Por que é que, tendo tudo, há de ficar o passarinho
mudo, arrepiado e triste, sem cantar?

É que, criança, os pássaros não falam.
Só gorgeando a sua dor exalam, sem que os homens os possam entender.
Se os pássaros falassem,
talvez os teus ouvidos escutassem este cativo pássaro dizer:

"Não quero o teu alpiste!

Gosto mais do alimento que procuro na mata livre em que a voar me viste.
Tenho água fresca num recanto escuro.

Da selva em que nasci; da mata entre os verdores,
tenho frutos e flores, sem precisar de ti!

Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola de haver perdido aquilo que perdi...
Prefiro o ninho humilde, construído de folhas secas, plácido, e escondido.

Entre os galhos das árvores amigas...
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?

Quero saudar as pompas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde, entoar minhas tristíssimas cantigas!

Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...

QUERO VOAR! VOAR!..."

Estas coisas o pássaro diria, se pudesse falar.
E a tua alma, criança, tremeria, vendo tanta aflição.
E a tua mão, tremendo, lhe abriria a porta da prisão...

Olavo Bilac, 
jornalista e poeta brasileiro 1865/1918



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 26 de dezembro de 2017





Ama-me por amor do amor somente.
Não digas: “Amo-a pelo seu olhar,
O seu sorriso, o modo de falar
Honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minh’alma em comunhão constantemente
Com a sua”. Porque pode mudar
Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
Do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
De tuas mãos enxuga, pois se em mim
Secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
Me hás de querer por toda a eternidade.

Elizabeth Barrett Browning



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017




Anoitecer, na praia

Junto ao mar, as crianças
são mais alegres; as mulheres são
mais harmoniosas,
mais naturais.
E, enquanto a ondulação
das águas marulhosas
arma, em seu ritmo, imprevistas danças
isócronas, mas sempre desiguais;
e a escumilha na praia arma frouxéis de rosas,
efêmeros, sutis, quase irreais;
e as crianças, à beira da água, armam castelos
na úmida areia,
sob os olhos da miss, ou da ama que as ladeia,
e o distraído encanto dos papais;
e os velhos, em seus trajos mais singelos,
sob os toldos velados,
repousados,
sorriem cachimbando,
recordando
coisas imemoriais, —
cada mulher que passa é atávica sereia;
é atávico tritão
cada atleta que emerge à ondulação
da correnteza rejuvenescente;
é atávico tritão
aquele nadador adolescente
ora a subordinar o mar fremente
que resfolega e ondeia,
ao ritmo do seu próprio coração...
(...)

Hermes Fontes  1888/1930


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/