sábado, 2 de dezembro de 2017





Quando, à noite, no leito perfumado
Lânguida fronte no sonhar reclinas,
No vapor da ilusão por que te orvalha
Pranto de amor as pálpebras divinas?

E, quando eu te contemplo adormecida
Solto o cabelo no suave leito,
Por que um suspiro tépido ressona
E desmaia suavíssimo em teu peito?

Virgem do meu amor, o beijo a furto
Que pouso em tua face adormecida
Não te lembra do peito os meus amores
E a febre do sonhar de minha vida?

Dorme, ó anjo de amor! no teu silêncio
O meu peito se afoga de ternura...
E sinto que o porvir não vale um beijo
E o céu um teu suspiro de ventura!

Um beijo divinal que acende as veias,
Que de encantos os olhos ilumina,
Colhido a medo, como flor da noite,
Do teu lábio na rosa purpurina...

E um volver de teus olhos transparentes,
Um olhar dessa pálpebra sombria
Talvez pudessem reviver-me n’alma
As santas ilusões de que eu vivia!



Manuel Antônio Álvares de Azevedo



Painting by Serge Marshennikov

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017



Art By Pietro Annigoni (1910 - 1988)







Recordação

Agora, o cheiro áspero das flores
leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.

Eram assim teus cabelos;
tuas pestanas eram assim, finas e curvas.

As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo,
tinham a mesma exaltação de água secreta,
de talos molhados, de pólen,
de sepulcro e de ressurreição.

E as borboletas sem voz
dançavam assim veludosamente.

Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!
Deixa virem teus olhos, como besouros de ónix,
tua boca de malmequer orvalhado,
e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,
com suas estrelas e cruzes,
e muitas coisas tão estranhamente escritas
nas suas nervuras nítidas de folha,
- e incompreensíveis, incompreensíveis.


Cecília Meireles


Painting By Monika Luniak

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quinta-feira, 30 de novembro de 2017




Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.


Fernando Pessoa




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 29 de novembro de 2017





Canção das mulheres

Que o outro saiba quando estou com medo, 
e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, 
mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, 
e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, 
porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, 
ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dóia idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco 
- em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo 
''Olha que estou tendo muita paciência com você!''

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, 
o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, 
o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, 
mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, 
nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, 
incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.


Lya Luft




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terça-feira, 28 de novembro de 2017




Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

Mario Quintana




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segunda-feira, 27 de novembro de 2017




II - O Meu Olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro
Heterónimo de Fernando Pessoa



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domingo, 26 de novembro de 2017




Uma Ausência de Mim

Uma ausência de mim por mim se afirma.
E, partindo de mim, na sombra sobre
o chão que não foi meu, na relva simples
o outro ser que sonhei se deita e cisma.

Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro
— e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,
os bichos sob o sol, a chuva e tudo —
ou foi o sonho dos demais que sonho?

A epiderme da vida me vestiu,
ou breve imaginar de um ócio inútil
ergueu da sombra a minha carne, ou sou

um casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.


Alberto da Costa e Silva, 
in 'A Linha da Mão'





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