sábado, 15 de julho de 2017



Ária dos olhos

Mágoas de além
De olhos de quem
Pede esmolas:
Gemidos e ais
Das autunais
Barcarolas:

Cisnes em bando
Sonambulando
Sobre o mar:
Nuvens de incenso
No céu imenso,
Todo luar:

Olhos sutis,
Ah! que me diz
O olhar santo,
Que sobre mim
Volveis assim
Tanto e tanto?

E que esperança
Nessa romança
Cheia de ais,
Olhos nevoentos,
Noites e ventos
Autunais!


– Alphonsus de Guimaraens, (Dona Mística ‘1899’), 
em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. 
Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/



Tristêza

O sol do outono, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lagrimas, beijando
A terra, e o meu espirito a sorrir...

Eis como a minha vida vae passando
Em frente ao seu Phantasma... E fico a ouvir
Silencios da minh'alma e o resurgir
De mortos que me fôram sepultando...

E fico mudo, extatico, parado
E quasi sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade...

Só a longinqua estrela em mim actua...
Sou rocha harmoniosa á luz da lua,
Petreficada esphinge de saudade...


Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 14 de julho de 2017




POÉTICA CONTRADITÓRIA

Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.

Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.

Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heroica dos teus prantos.

Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.

Não sejas um escritor, mas um profeta.

António Quadros



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 13 de julho de 2017




Ama-me por amor do amor somente.
Não digas: “Amo-a pelo seu olhar,
O seu sorriso, o modo de falar
Honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minh’alma em comunhão constantemente
Com a sua”. Porque pode mudar
Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
Do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
De tuas mãos enxuga, pois se em mim
Secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
Me hás de querer por toda a eternidade.


Elizabeth Barrett Browning



Fonte: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 12 de julho de 2017




Plena mulher, maçã carnal, lua quente,
espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
que antiga noite o homem toca com seus sentidos?

Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos e dois corpos
por um só mel derrotados.

Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia

corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra de um raio.

Pablo Neruda



https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 11 de julho de 2017




CUIDADO!


Ó namorados que passais, sonhando,
quando bóia, no céu, a lua cheia!
Que andais traçando corações na areia
e corações nos peitos apagando!
Desperta os ninhos vosso passo… E quando
pelas bocas em flor o amor chilreia,
nem sei se é o vosso beijo que gorjeia,
se são as aves que se estão beijando…
Mais cuidado! Não vá vossa alegria
afligir tanta gente que seria
feliz sem nunca ouvir nem ver!
Poupai a ingenuidade delicada
dos que amaram sem nunca dizer nada,
dos que foram amados sem saber!

(Guilherme de Almeida)

(Messidor, 1919.)




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 10 de julho de 2017



A Gentil Camponesa
MOTE

Tu és pura e imaculada,
Cheia de graça e beleza;
Tu és a flor minha amada,
És a gentil camponesa.

GLOSAS

És tu que não tens maldade,
És tu que tudo mereces,
És, sim, porque desconheces
As podridões da cidade.
Vives aí nessa herdade,
Onde tu foste criada,
Aí vives desviada
Deste viver de ilusão:
És como a rosa em botão,
Tu és pura e imaculada.

És tu que ao romper da aurora
Ouves o cantor alado...
Vestes-te, tratas do gado
Que há-de ir tirar água à nora;
Depois, pelos campos fora,
É grande a tua pureza,
Cantando com singeleza,
O que ainda mais te realça,
Exposta ao sol e descalça,
Cheia de graça e beleza.

Teus lábios nunca pintaste,
És linda sem tal veneno;
Toda tu cheiras a feno
Do campo onde trabalhaste;
És verdadeiro contraste
Com a tal flor delicada
Que só por muito pintada
Nos poderá parecer bela;
Mas tu brilhas mais do que ela,
Tu és a flor minha amada.

Pois se te tenho na mão,
Inda assim acho tão pouco,
Que sinto um desejo louco:
Guardar-te no coração!...
As coisas mais belas são
Como as cria a Natureza,
E tu tens toda a grandeza
Dessa beleza que almejo,
Tens tudo quanto desejo,
És a gentil camponesa

António Aleixo, 
in "Este Livro que Vos Deixo..." 


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 9 de julho de 2017





A rosa de Hiroxima

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Vinicius de Moraes


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/