sexta-feira, 4 de agosto de 2017




Tenho medo
Estão as portadas fechadas
e eu tenho frio
muito frio dos lugares inóspitos
e medo
muito medo dos açaimes brancos
- vivo na história dos chacais
Sou libertina de um costume antigo
tenho um corpo feito de metais
boca de sangue e ferro
braços presos nos matagais
Tenho medo
muito medo das colinas
onde me esperam
outras histórias
visionárias de novos mundos
Mas tenho medo… muito medo
e os braços presos nos matagais



Do livro "Uivam os Lobos" de Dakini, 
pseudónimo de Dolores Marques.



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quinta-feira, 3 de agosto de 2017





Poema da Voz que Escuta

Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.

Políbio Gomes dos Santos, in 'Voz que Escuta'



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quarta-feira, 2 de agosto de 2017




Ecos D'Alma

Oh! madrugada de ilusões, santíssima,
Sombra perdida lá do meu Passado,
Vinde entornar a clâmide puríssima
Da luz que fulge no ideal sagrado!

Longe das tristes noites tumulares
Quem me dera viver entre quimeras,
Por entre o resplendor das Primaveras
Oh! madrugada azul dos meus sonhares.

Mas quando vibrar a última balada
Da tarde e se calar a passarada
Na bruma sepulcral que o céu embaça

Quem me dera morrer então risonho
Fitando a nebulosa do meu sonho
E a Via-Látea da Ilusão que passa!


Augusto dos Anjos



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terça-feira, 1 de agosto de 2017




Uma Vida Esquecida
Para o Fernando Alves dos Santos

Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta parada.

Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.

António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas"



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segunda-feira, 31 de julho de 2017




Agonia do Coração

(A Maria Carolina de Vasconcellos)

"Estrelas fulgem da noite em meio
Lembrando círios louros a arder...
E eu tenho a treva dentro do seio...
Astros! velai-vos, que eu vou morrer!

Ao longe cantam. São almas puras
Cantando á hora do adormecer...
E o eco triste sobe ás alturas...
Moças! não cantem, que eu vou morrer!

As mães embalam o berço amigo,
Doce esperança de seu viver...
E eu vou sozinha para o jazigo...
Chorai, crianças, que eu vou morrer!

Pássaros tremem no ninho santo
Pedindo a graça do alvorecer...
Enquanto eu parto desfeita em pranto...
Aves, suspirem, que eu vou morrer!

De lá do campo cheio de rosas
Vem um perfume de entontecer...
Meu Deus! que mágoas tão dolorosas...
Flores! Fechai-vos, que eu vou morrer!"


- Auta de Souza, in “Horto”, 1900.



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domingo, 30 de julho de 2017




PRESENÇA

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.

Mario Quintana