sábado, 7 de abril de 2018




Canção

A pastorinha morreu, todos estão a chorar. Ninguem a conhecia e todos estão a chorar.
A pastorinha morreu, morreu de seus amôres. Á beira do rio nasceu uma arvore e os braços da arvore abriram-se em cruz.
As suas mãos compridas já não acenam de alêm. Morreu a pastorinha e levou as mãos compridas.
Os seus olhos a rirem já não troçam de ninguem. Morreu a pastorinha e os seus olhos a rirem.
Morreu a pastorinha, está sem guia o rebanho. E o rebanho sem guia é o enterro da pastorinha.
Onde estão os seus amôres? Ha prendas para Lhe dar. Ninguem sabe se é Elle e ha prendas para Lhe dar.
Na outra margem do rio deu á praia uma santa que vinha das bandas do mar. Vestida de pastora p'ra se não fazer notar. De dia era uma santa, à noite era o luar.
A pastorinha em vida era uma linda pastorinha; a pastorinha mórta é a Senhora dos Milagres.

Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'
1893/1970


Fonte:  http://www.citador.pt/

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sexta-feira, 6 de abril de 2018




As nossas Ânsias

Para as estrelas vão as nossas ânsias;
Todas as ânsias que na Dor sentimos...
São aves que se perdem nas distâncias;
E, nas asas dos sonhos, as seguiram.

E lá, mais delicadas que fragrâncias
Dos liriais que no caminho vimos,
Todas elas, vestidas de flamâncias,
São as árias da luz, que no ar ouvimos.
Mas as ânsias que vão, serenamente,
Para as estrelas, e por lá, na albente
Doçura casta das estrelas ficam.

São, com certeza, aquelas que, no mundo,
Neste sinistro báratro profudo,
Nos cadinhos do amor se purificam

Juvêncio de Araújo Figueiredo 1865/1927

Versos Antigos, 1966




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terça-feira, 3 de abril de 2018





Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny



in Pena Capital



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