sábado, 8 de julho de 2017




O Peixe

Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.

Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.

O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.

Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!


Patativa do Assaré


Foto: By Owen Perry

sexta-feira, 7 de julho de 2017




Eu amo uma mulher
que não existe.
Mas vejo-a  sempre,
conversamos muito
e quero-lhe bem.
Tem muitas faces,
não sei seu nome
e, se nome tem.
Só sei que quando
eu estou triste,
ela então existe
e de repente vem
confortar-me a alma,
trazer-me calma
e me fazer bem.
E a quem me indaga:
- Que forma vaga
de amar alguém?
Eu nada escondo
e então respondo
como convém:
- É meu coração,
na solidão,
sem ter ninguém.


Ronaldo Cunha Lima


https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 6 de julho de 2017




Horas Rubras
Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço olaias em flor às gargalhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p'las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve e branca e mist'riosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!


Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"


Foto: Pesquisa Google

quarta-feira, 5 de julho de 2017




Beber Toda a Ternura
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces


Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'


Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 4 de julho de 2017




II
Ó se o recordo, e bem! numa invernia brava,
O ríspido e glacial Dezembro decorria
E, da lareira ao chão, cada brasa lançava
O supremo fulgor da sua lenta agonia.
E eu a esperar, em vão, a aurora que tardava
Queria, em vão, achar nessa velha teoria
Contida no volume antigo que estudava,
Um consolo sequer à dor que me pungia.
Em vão! consolo, em vão! à minha dor profunda
Em vão! repouso, em vão! à alma que se me inunda
Desta imortal saudade aos prantos imortais.
Porque jamais se esquece, alma consoladora
Como essa que nos céus é chamada Eleonora,
Nome que nunca mais ouvirei, nunca mais!

Emílio de Meneses

Fot: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 3 de julho de 2017




O solstício de Dezembro

O mundo jamais é parecido consigo próprio
tão inesperada é a noite,
mesmo quando em sua rotação se repete,
efectiva e extingue,
no corpo e cinzas de uma criança,

não vos espanteis por isso senhores,
dezembro é um solstício que nos sobrevive
e nada mais se anseia
do que abraçar todo o tempo do tempo
para seguir uma estrela viva,
um frágil e divino coração de criança
em homens aturdidos pelo afago da entrega,
guardai pois um Natal,
nada mais se reterá no cheiro do orvalho
que aconchegamos dentro de nós,

o seu leito evidencia a inquietude do fogo
e a poesia parece a puerícia do verbo:
ainda que nos céus
em seu nome o nome do mundo se cante,
o que é sagrado e profano,
o que é rei e pastor
e se planta e adolesce
e se percorre até à extrema boca do advento,
mundo de júbilos e prantos
que como o sol nas trevas se revive.


Uma criança nos aquieta o corpo,
a noite atravessa o mundo,
obscuros e formais viajantes,
se as quimeras se ofuscam sob os céus
a culpa é dos corações e não da luz das estrelas.


             João Rasteiro



Fonte: http://nocentrodoarco.blogspot.pt
Foto: By Irene Sekulic

domingo, 2 de julho de 2017

Homenagem a Sophia  De Mello Breyner  Andresen 
poetisa e escritora portuguesa

1919/2004





A ESTRELA
Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava

Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada

A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava

Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava

E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava

E assim eles disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada

Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava

E a estrela do céu parou em cima
de uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água

Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado

Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Livro sexto, 1962
A Estrela


Fonte: http://www.avozdapoesia.com.br/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/