sábado, 13 de abril de 2019







Um Beijo

Um minuto o nosso beijo
Um só minuto; no entanto
Nesse minuto de beijo
Quantos segundos de espanto!
Quantas mães e esposas loucas
Pelo drama de um momento
Quantos milhares de bocas
Uivando de sofrimento!
Quantas crianças nascendo
Para morrer em seguida
Quanta carne se rompendo
Quanta morte pela vida!
Quantos adeuses efêmeros
Tornados o último adeus
Quantas tíbias, quantos fêmures
Quanta loucura de Deus!
Que mundo de mal-amadas
Com as esperanças perdidas
Que cardume de afogadas
Que pomar de suicidas!
Que mar de entranhas correndo
De corpos desfalecidos
Que choque de trens horrendo
Quantos mortos e feridos!
Que dízima de doentes
Recebendo a extrema-unção
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração!
Quanto cadáver sozinho
Em mesa de necrotério
Quanta morte sem carinho
Quanto canhenho funéreo!
Que plantel de prisioneiros
Tendo as unhas arrancadas
Quantos beijos derradeiros
Quantos mortos nas estradas!
Que safra de uxoricidas
A bala, a punhal, a mão
Quantas mulheres batidas
Quantos dentes pelo chão!
Que monte de nascituros
Atirados nos baldios
Quantos fetos nos monturos
Quanta placenta nos rios!
Quantos mortos pela frente
Quantos mortos à traição
Quantos mortos de repente
Quantos mortos sem razão!
Quanto câncer sub-reptício
Cujo amanhã será tarde
Quanta tara, quanto vício
Quanto enfarte do miocárdio
Quanto medo, quanto pranto
Quanta paixão, quanto luto!...
Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto:
Desse beijo de um minuto
Mas que cria, em seu transporte
De um minuto, a eternidade
E a vida, de tanta morte.


Vinicius de Moraes
Petrópolis , 1962



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sexta-feira, 12 de abril de 2019







Elegia múltipla


III


Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
loucamente
por um caçador de que nada sabia.
E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.
Não havia animal que no seu pêlo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas por uma morte
tão bela.
Porque as ervas têm pálpebras abertas
sobre estas imagens tremendamente puras.
Pelo orvalho dentro.
De dia. De noite.
A sua cara batia nas candeias.
Batia nas coisas gerais da manhã.
Havia um homem que ia admiravelmente perseguido.
Tomava alegria no pensamento
do orvalho. Corria.
Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Que têm os olhos cegos como sangue.
Este corria assombrado.
Os mortos devem ser puros.
Ouvi dizer que respiram.
Correm pelo orvalho dentro, e depois
estendem-se. Ajudam os vivos.
São doces equivalências, luzes, ideias puras.
Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar
– a morte é passar, como rompendo uma palavra,
através da porta,
para uma nova palavra. E vejo
o mesmo ritmo geral. Como morte e ressureição
através das portas de outros corpos.
Como uma qualidade ardente de uma coisa para
outra coisa, como os dedos passam fogo
à criação inteira, e o pensamento
pára e escurece
– como no meio do orvalho o amor é total.
Havia um homem que ficou deitado
com uma flecha na fantasia.
A sua água era antiga. Estava
tão morto que vivia unicamente.
Dentro dele batiam as portas, e ele corria
pelas portas dentro, de dia, de noite.
Passava para todos os corpos.
Como em alegria, batia nos olhos das ervas
Que fixam estas coisa puras.
Renascia.


Herberto Helder, no livro “Poemas completos




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quinta-feira, 11 de abril de 2019





A neve cai.

Há uma mulher nua no meu quarto.
Os olhos pousados na carpete cor de vinho.
Tem dezoito anos. E os seus cabelos são lisos.
Não fala o idioma de Montreal.
Não se quer sentar.
Não parece ter a pele arrepiada.

Ficamos os dois a ouvir a tempestade.


Leonard Cohen



Serge Marshennikov Artist

quarta-feira, 10 de abril de 2019





IV

Assim cantou: e tal qual rosa e rosa
Se amparam e se põem ao léu do vento,
Quando a folha caída ganha alento
Na nódoa íntima de um céu cor rosa,
Desse modo a canção o beijo esposa;
E seu rosto afogou-se tão cinzento
Com seus cinzentos olhos, que, se atento
E os revejo, não sei se Amor os olha.

Sei apenas que aos poucos me embebedo,
Em longos goles, disto que ela bebe,
E o que chora, choro, e o que inala, inalo:
E quanto mais me inclino, o gentil dedo
Do Amor em meu pescoço se percebe
Até que os dois sumamos num só halo.



Dante Gabriel Rossetti, poeta, ilustrador e pintor britânico (1828-1882).



(Trad. Matheus "Mavericco".)


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terça-feira, 9 de abril de 2019






A morte dos amantes



Teremos leitos só rosas ligeiras
Divãs de profundeza tumular,
E estranhas flores sobre prateleiras,
Sob os céus belos a desabrochar.
A arder de suas luzes derradeiras,
Nossos dois corações vão fulgurar,
Tochas a refletir duas fogueiras
Em nossas duas almas, este par
Gêmeos espelhos. Por tarde mediúnica,
Nós trocaremos uma flama única
Um adeus que é um soluço tão cruel;
Pouco depois, um anjo abrindo as portas,
Virá vivificar, o mais fiel,
Os espelhos sem luz e as chamas mortas



Charles Baudelaire, poeta francês (1821- 1867).





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domingo, 7 de abril de 2019






Abro a janela


Abro a janela e a porta. A luz do sol faísca
Numa rubra efusão de berilos diluídos
Onde estivera, há pouco, a mais bela odalisca
Do oriente, a lavar seus cabelos brunidos.

À luz do sol a praia é uma casa mourisca
Com mirantes azuis, circulando-a, floridos.
E esse barco a correr recorda uma ave arisca,
Que se afasta da terra. E aqui, pelo comprido

Caminho que a esmeralda encantadora arrasta
Vejo um rio a tremer no verdor que se alastra,
E um perfume sutil de roseiras encerra...

E através desse rio, e através do oceano,
Contemplativamente olho o sol, todo ufano,
A fecundar, seguido, o cetim da terra.



Juvêncio de Araújo Figueiredo



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