quarta-feira, 6 de abril de 2022

 

 

 


 

Slava Ukraini  🇺🇦

 

Um novo milagre é preciso  

 

A sua cidade já não existe.

 Sem rosas

Nem quimeras de marear

As rotas, escuta-se serodiamente

Apenas o intrínseco alvoroço de vozes ausentes

De sílabas híbridas,

Um hálito dos corpos ébrios de sede

E do olhar enigmático de alguns ciganos

Com a alma suja de desperdícios

Onde só as altivas sobras de solidão mancham

A visão retemperadora do astro-rei

Queimando o mondego

Quando os peixes se mutilam

Desassossegando as águas de guelras vermelhas

No regaço alquímico de Isabel,

 

Hoje o rio secou o assombro

E a infinda maresia da embarcação

Dos náufragos primordiais

Desapareceu. Foi abandonada por toda a gente,

Mas no centro da cidade

Está oculto um inexplicável oceano

Para aqueles que nunca o ousarem sulcar,

O sustento da pedra onde se alimentam os corpos

Dilacerou a sua unidade de utopia

Obstruindo o percurso da boca às raízes

E  depois veio a areia e engoliu-a.

 

Um novo milagre é preciso

E embeber a inutilidade de um poema é preciso,

Deveremos ser bilíngues de rotas e casas

Em uma única cidade

Pois é nela que a nudez de quem fere e sangra

Não questiona o heróico murmúrio do estorvo do verbo.

 

 

João Rasteiro

 

 

 

João Rasteiro é um poeta e ensaísta português. É Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra.

terça-feira, 5 de abril de 2022


 

 

 


 

Glory to Ukraine   💙    🇺🇦   💛

 

O sol se põe

 

O sol se põe, colinas negrejam

A avezinha se cala, o campo se aquieta,

Homens contentes fruem repouso,

Mas eu só miro… e voo com alma

Ao pomar escuro na minha Ucraína.

Voo com meus pensamentos,

E assim a alma se acalma.

Negrejam campos, matas e montes,

No céu profundo nasce uma estrela.

Oh estrela, estrelinha! – e lágrimas rolam.

Tu já surgiste na minha Ucraína?

Será que olhos amados

No céu te buscam? Ou já esqueceram?

Se já esqueceram, durmam tranquilos,

E com o meu destino não se perturbem.

 

 

Taras Shevchenko, poeta ucraniano (1814-1861).

 

 

segunda-feira, 4 de abril de 2022






Glory to Ukraine   🇺🇦

 

Vento Quente

 

Lamento cego no vento, dias lunares de inverno,

Infância, os passos se perdem discretos em negra sebe,

Longo toque noturno.

Discreta vem a noite branca,

 

Transforma em sonhos purpúreos tormento e dor

Da vida pedregosa,

Para que nunca o espinho deixe o corpo em decomposição.

 

Profunda em sono suspira a alma angustiada,

 

Profundo o vento em árvores destruídas,

E a figura de lamento da mãe

Vagueia pela floresta solitária

 

Desse luto silente; noites

Repletas de lágrimas, de anjos de fogo.

Prateado, espatifa-se contra a parede nua um esqueleto de criança.

 

Georg Trakl

(tradução: Cláudia Cavalcante)

 

 

Georg Trakl foi um proeminente poeta expressionista Austríaco do início do século XX (1887, Salzburgo, Áustria - 1914, Cracóvia, Polónia)