sábado, 22 de setembro de 2018




Sombra de Palha

Dêem-me todas as jóias das afogadas
dois presépios
um cavalinho e uma agulha de chapeleira
em seguida desculpem-me
já que não tenho tempo de respirar
sou um acaso
a construção solar deteve-me aqui mesmo
e agora nada faço senão deixá-la morrer
procurem na tabela das contas atrasadas
a trote na mão fechada debaixo da minha cabeça tilintante
um copo no qual se abre um olho amarelo
abre também o sentimento
e no ar puro esvoaçam as princesas
tenho nisso muito orgulho
e ao mesmo tempo uma gotas de água insulsa
para refrescar o vaso das flores bolorentas
ao fundo da escada
o pensamento divino no azulejo estrelado do céu
a expressão das banhistas é a morte do lobo
tende-me por amiga
a amiga dos ardores e das raivas
que duas vezes vos olha
alisai a vossa plumagem diz ela
os meus remos de pau-santo fazem cantar vossos cabelos
um som claro abandonava a praia
negra da cólera dos seixos
vermelha do lado do horizonte como uma chapa incandesce


 in “Luz da Terra” – André Breton .



Photography by Jaroslav Monchak

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 20 de setembro de 2018






Adão e Eva

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a carne lhe pedia.

- E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
...Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

- O meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram,
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
- Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-me tudo!
...Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado.
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Adão e Eva se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade,
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
- Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuámos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!


José Régio, escritor português (1901-1969).


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/