sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018





Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.

Amei-te com os olhos
o espelho doido dos olhos
e a sede inextinguível da boca.

Amei-te com a pele
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.

Amei-te com as mãos
As mesmas com que te digo adeus.

In “As Pequenas Palavras”
Guimarães Editores - 1987

Rosa Lobato de Faria



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018




Seria o Amor Português

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”



Fonte: http://www.citador.pt/

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quarta-feira, 31 de janeiro de 2018




A Mais Bela Noite do Mundo
Hoje,
será o fim!

Hoje
nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!

Nem o luar, pano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
- Menino! acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores – o dia!

- Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!

(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).

Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua...
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.

- Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espectáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.

Amanhã,
será o ultrapassar outra curva
no teu caminho destinado.

(Era esta a voz do papão
que acendia a vela, tinha regaço de sombra
e velava
as noites da minha rua e a minha vida
e pintava-se de belo
na máscara de papelão).

Hoje,
será o fim!

Hoje,
nem a sombra do que há-de vir,
nem os mestres, nem os amigos, nem os livros,
nem a fragilidade dos meus pés
feitos de barro e cansaço!
Todas as minhas revoltas domadas,
todos os meus gestos em meio
e as minhas palavras sufocadas
terão a sua hora de viver e amar!

Hoje,
nem o cadáver a sorrir na morgue,
nem as mãos que ficaram angustiosas,
arrepiadas
no seu medo de findar!

Hoje,
será a mais bela noite do mundo!

Fernando Namora, in 'Mar de Sargaços'


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terça-feira, 30 de janeiro de 2018




Leitura

Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.

Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia
de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.

Carlos de Oliveira, in 'Pastoral'




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segunda-feira, 29 de janeiro de 2018




II

Que hei de fazer, amor, sem teu cuidado
quando novembro chegue às minhas veias?
Já não trarei as mãos, como hoje, cheias
de açucenas, do teu jardim velado.

Porém, desse jardim por mim guardado
entre estas folhas de sonetos cheias,
restará a saudade - e em suas peias
um perfume de amor, de amor calado.

E quando perguntarem: a isto, que era?
Por que uma tal lembrança murcha e rota
no teu velho caderno de poesias?

Eu lhes direi que foi a primavera!
O sumo dos tens lábios, gota a gota,
semeando as ilusões mais fugidias.

Rafael Duyos
(Espanha 1906)



Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/

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