sábado, 3 de março de 2018




Anjo Caído

Na flor da vida, formosa,
ingénua, casta, inocente,
eras tu no mundo, rosa!
Quem te arrojou de repente
para o abismo fatal?
Viste um dia o sol de abril;
o teu seio virginal
sorriu alegre e gentil.


Ergueu-se aos clarões suaves
d'aquela doce alvorada
a tua face encantada.
Amaste o doce gorjeio
que desprendiam as aves,
e no teu cândido seio
quanto amor, quanta ilusão
alegre pulava então.


Mal haja o fatal destino,
maldita a sinistra mão,
que em teu cálix purpurino
derramou fera e brutal
esse veneno fatal.


Hoje és bela; mas teu rosto
que outrora alegre sorria,
é todo melancolia!


Hoje nem sol, nem estrela,
para ti brilha no céu;
mal haja quem te perdeu!


Raimundo António de Bulhão Pato


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 1 de março de 2018




Quem Rasgou os Meus Lençóis de Linho
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, d tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'




Painting By Vicente Romero

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018





Chuva


Negra, a noite enegrece o espaço opaco em torno.
Asas desfilam no ar, sumindo na penumbra.
O ar é parado e abafadiço. Como um forno,
A noite marcha e a terra inteira tinge a obumbra.

Rasga o colo do céu rubro rubi. Deslumbra
De um raio em ziguezague o rutilante adorno.
Tra o trovão após o raio que relumbra.
Morre na noite a dispnéia de um bochorno.

O arvoredo, a tremer, ergue os braços ao léu.
A terra ardente é toda um pedaço de gula,
Um desejo de brasa a pedir chuva ao céu.

E a chuva, em ricochete, abre o céu carregado,
Esperneia, peralta; em pingos grossos, pula;
E tomba, e treme, e tamborila no telhado...

Camillo de Jesus Lima




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 25 de fevereiro de 2018




Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Mário de Andrade



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/