quarta-feira, 9 de maio de 2018





Nosso sonho morreu. Devagarinho,
Rezemos uma prece doce e triste
Por alma desse sonho! Vá… baixinho…
Por esse sonho, amor, que não existe!

Vamos encher-lhe o seu caixão dolente
De roxas violetas; triste cor!
Triste como ele, nascido ao sol poente,
O nosso sonho… ai!… reza baixo… amor…

Foste tu que o mataste! E foi sorrindo,
Foi sorrindo e cantando alegremente,
Que tu mataste o nosso sonho lindo!

Nosso sonho morreu… Reza mansinho…
Ai, talvez que rezando, docemente,
O nosso sonho acorde… mais baixinho…


Florbela Espanca



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


terça-feira, 8 de maio de 2018




Nos lábios da paisagem


Bátegas de vento beijam as nuvens cinzentas
abrindo fendas nas encostas da minha serra
alguém nas grades da vida beija o próprio ar que respira
agora chove
perduram corações nos cabelos das  montanhas
como se o piano do tempo tocasse só para elas
odes de trovas pintadas e inventadas em réstias de aguarelas
quando as poucos aves deslizam numa singela viagem
até que surge o amor
nos lindos lábios da paisagem

António José da Silva, escritor e teatrólogo português 1705-1739


Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 7 de maio de 2018





Chão de Estrelas

Minha vida era um palco iluminado
E eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Meu barracão lá no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do Sol a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher, pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional.
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
E tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

Orestes Barbosa, poeta e compositor popular brasileiro 1893-1966



Olga Moskvina Photography

sexta-feira, 4 de maio de 2018




Árvores

Eu, nestes campos, longe do tumulto,
Amo essas tristes árvores que crescem
Por sobre as margens dum arroio oculto,
Ouvindo as águas que cantando descem...

Gosto de vê-las à tardinha, envoltas
Numa suave e mística tristeza,
Olhando os rolos das espumas soltas
Que encrespam o lençol da correnteza.

Tristonhas plantas! Árvores sombrias!
Como se as torturasse estranha mágoa,
E as compungissem fundas nostalgias,
- Procuram consolar-se à beira d'água.

Oh! vós que amais os campos, nunca as vistes?
- Desconsoladas, trêmulas, chorosas,
Pelas barrancas dos arroios tristes
Debruçam as ramagens silenciosas...

Que importa o sol, que importa a chuva e o vento,
Se sempre as mesmas ânsias as consomem?
Talvez - quem sabe? - nesse desalento,
Palpite e sofra o coração dum homem!

Talvez nessas folhagens, nesses ramos,
Torturados de angústia e desconforto,
Sem que a vejamos, sem que a compreendamos,
Soluce a alma de algum poeta morto.

Ai, não turbeis a misteriosa mágoa,
A imensa nostalgia em que se abismam;
Deixai-as em silêncio, à beira dágua,
Essas tristonhas árvores que cismam...


Paulo Setubal


Publicado no livro Alma Cabocla (1920). Poema integrante da série Sertanejas.



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 3 de maio de 2018






Soneto da Mulher ao Sol

Uma mulher ao sol - eis todo o meu desejo
Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz
A flor dos lábios entreaberta para o beijo
A pele a fulgurar todo o pólen da luz.

Uma linda mulher com os seios em repouso
Nua e quente de sol - eis tudo o que eu preciso
O ventre terso, o pêlo umido, e um sorriso
À flor dos lábios entreabertos para o gozo.

Uma mulher ao sol sobre quem me debruce
Em quem beba e a quem morda, com quem me lamente
E que ao se submeter se enfureça e soluce

E tente me expelir, e ao me sentir ausente
Me busque novamente - e se deixes a dormir
Quando, pacificado, eu tiver de partir...

Vinicius de Moraes



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 1 de maio de 2018





Se dela o doce olhar me mata aqui,
e as palavrinhas brandas de tal sorte,
e se Amor sobre mim a faz tão forte,
só quando fala ou só quando sorri,

ah! que será, se acaso ela por si,
por minha culpa ou por malvada sorte,
separa os olhos da mercê, e à morte,
lá onde me protege, então me fie?

Porém se tremo, e em coração gelado
vejo às vezes mudar sua figura,
medo é de antigas provas derivado.

Mulher é coisa móvel por natura;
onde eu sei bem que um amoroso estado
no peito dela pouco tempo dura.

Francesco Petrarca.

Tradução de Vasco Graça Moura




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 29 de abril de 2018





Desde a Aurora


Como um sol de polpa escura
para levar à boca,
eis as mãos:
procuram-te desde o chão,
entre os veios do sono
e da memória procuram-te:
à vertigem do ar
abrem as portas:
vai entrar o vento ou o violento
aroma de uma candeia,
e subitamente a ferida
recomeça a sangrar:
é tempo de colher: a noite
iluminou-se bago a bago: vais surgir
para beber de um trago
como um grito contra o muro.
Sou eu, desde a aurora,
eu - a terra - que te procuro.



Eugénio de Andrade,
in "Obscuro Domínio"




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

By Andrea Gibson