segunda-feira, 20 de abril de 2020





Conheço esse Sentimento


Conheço esse sentimento
que é como a cerejeira
quando está carregada de frutos:
excessivo peso para os ramos da alma.

Conheço esse sentimento
que é o da orla da praia
lambida pela espuma da maré:
quando o mar se retira
as conchas são pequenas saudades
que doem no coração da areia.

Conheço esse sentimento
que é o dos cabelos do salgueiro
revoltos pelas mãos ágeis da tempestade:
na hora quieta do amanhecer
pendem-lhe tristemente os braços
vazios do amado corpo do vento.

Conheço esse sentimento
que passa nos teus olhos e nos meus
quando de mãos dadas
ouvimos o Requiem de Mozart
ou visitamos a nave de Alcobaça.

Pedro e Inês
a praia e a maré
o salgueiro e o vento
a verdade e o sonho
o amor e a morte
o pó das cerejeiras
tu.
e eu.


in 'Dispersos'



Rosa Lobato de Faria, escritora portuguesa (1932- 2010).

sábado, 18 de abril de 2020







Soneto quase insistente numa noite de Serenatas



Queria uma mulher de sangue e prata.
Qualquer mulher. Uma mulher qualquer,
quando nas noites de primavera
se ouve distante uma serenata.

Essa música é alma. E mesmo não fosse
verdade tanta mentira seria bom
saber que sua voz sempre retrata
o coração de uma mulher qualquer.

Quero querer com música. E quero
que me queiram com tom verdadeiro
Quase em azul e quase eternamente.

Será porque esse ritmo me arrebata,
ou talvez porque ouvindo serenatas
dói-me o Coração musicalmente.




Gabriel García Márquez


1945







Scott Rohlfs - Artist

sexta-feira, 17 de abril de 2020





Nova Era

(é um poema de amor )

Não! Não sei se sei, amar ainda.
Depois do caminho das quedas
Deste decair, que o tempo pesa!
Não sei, se sei amar.
Há uma certa incerteza no beijar
Olhar, ver esse rosto vincado
Ler nele o poema que me é dado.
Tenho de ser amorosa, perspicaz
Para ler a curvatura, que a vida teima dar-me.
A esse vulto tão esguio, modelado pelo suor e pelos gestos consumidos.
Ler! certeza ter, que te foste inclinando
Para proteger aquela com quem partilhavas teu prazer.
O tempo corre, leva-nos atrás.
O espírito engelha, o riso quebra
Ferem os estilhaços a retina
Ai! Aqueles olhos claros de esperança
Aquele rir tão de menina.
Olho-te, procuro em ti a chave de tu’alma.
Só a dos segredos se me oferece
Ofertas-me os lábios como dantes
Tens nos dedos mel suave
A febril ânsia da vontade
A lonjura do tempo gravou em nós cansaços.
Perdemo-nos no sublime encontro de amar…
Mas neste amar maduro
Já não sei amar-te como antes.



Augusta Maria Gonçalves de Carvalho


16/04/2020.

quarta-feira, 15 de abril de 2020






Quanto sabe a flor! Sabe ser branca
quando é jasmim, e roxa quando é lírio.
Sabe abrir o botão
sem reservar doçuras para si,
ao olhar ou à abelha.
Permite sorridente
que se faça mel com sua alma.
Quanto sabe a flor! Sabe deixar-se
colher por ti, para que tu a leves,
erguida, em teu peito numa noite.
Sabe fingir, quando no dia seguinte
de ti a afastas, que não é a mágoa
por tu a abandonares que a faz murchar.
Quanto sabe a flor! Sabe o silêncio;
e possuindo uns lábios tão formosos
sabe calar o «ai!» e o «não», e ignora
a negativa e o soluço.
Quanto sabe a flor! Sabe entregar-se,
dar, dar tudo o que é seu a quem a quer,
sem pedir mais que isso: que lhe queira.
Sabe, simplesmente sabe, amor.



Pedro Salinas



Espanha, Madrid 1891 – EUA, Boston 1951
in Rosa do Mundo -  2001 Poemas Para o Futuro
Trad. de José Bento
Editor: Assirio & Alvim




Fonte: cantodaalma.blogspot.com


Christian Schloe Artist