Minha Gata de Janeiro
Meu amor querido
Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu
miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha
minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática
minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha
história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto
de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas
três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol
meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha
ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria
minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar
habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de
andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro
de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário
minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada
meu templo grego minha colina meu verso de Holderlin meu gerânio meus olhos
grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus
seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas
unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso
etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos
minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu
pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló
minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de
fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha
aurora entre minas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas
meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência
de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu
corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos
minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu
minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu
país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico meu cravo de papel minha
Madragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de aladino minha
mulher
António Lobo Antunes, in 'Cartas da Guerra (17 Abr 1971')
Fonte do poema: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/