terça-feira, 19 de dezembro de 2017




Os Amantes de Novembro

Ruas e ruas dos amantes
Sem um quarto para o amor
Amantes são sempre extravagantes
E ao frio também faz calor

Pobres amantes escorraçados
Dum tempo sem amor nenhum
Coitados tão engalfinhados
Que sendo dois parecem um

De pé imóveis transportados
Como uma estátua erguida num
Jardim votado ao abandono
De amor juncado e de outono.


Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017




À Minha mãe

Como as flores de uma árvore silvestre
Se esfolham sobre a leiva que deu vida
A seus ramos sem fruto,
Ó minha doce mãe, sobre teu seio
Deixa que dessa pálida coroa
Das minhas fantasias
Eu desfolhe também, frias, sem cheiro,
Flores da minha vida, murchas flores
Que só orvalha o pranto!

Manuel Antônio Álvares de Azevedo



Art By Simon Mendez

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 17 de dezembro de 2017




Poema 5

Ó asceta,
Como é difícil renunciar a Maya!

Quando renunciei ao lar,
Apeguei-me às roupas.
Quando renunciei às roupas,
Apeguei-me aos farrapos.

Renunciei à paixão,
E inflamei-me com a raiva.
Renunciei à raiva,
E enregelei-me com a avidez.

Quando venci a avidez,
Enchi o peito de orgulho –
Minha mente ainda presa
Na vaidade da renúncia.

Apenas quando a mente se aquietou,
Foi que enfim pude sorrir para Maya.
Antigas memórias e nova concentração
Fundiram-se então em minhas palavras.

Kabir diz: Escutai, meus bons irmãos!
Somente um em um milhão resolveu este mistério.


Kabir



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 16 de dezembro de 2017





O Sonho

Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!


Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.


Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.


Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, apareces à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...

Olavo Bilac



 By David Hamilton

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017




Meu destino é um rio do deserto
A murmurar-me aos pés;
Veia nascida em uma noite amarga,
As bordas são de areia, a onda é larga
E loucas as marés.

Tem as águas azuis, — mas são profundas
Naquele murmurar,
Correm aqui como a falar segredos
Sobre leito de lodo e de rochedos
A um ignoto mar!

Pálidas flores que uma vaga incerta
Ali suspensas traz
Vicejam aos borrifos, do meu pranto.
Oh! essas flores que te prendem tanto
Deixa-as, Ofélia, em paz!

Não te curves à borda dessas águas
De superfície anil,
Ébria de amores, — do teu sonho casto
Não acharás ali o mundo vasto
Nem o rosado abril.

Deixa essas flores; uma onda as leva
Onde? Nem mesmo eu sei!
Deixa-as correr, — festões de meu destino;
Passa cantando, meu amor, teu hino,
A que eu te abençoarei.

Atado à pedra que me leva, um dia
A queda suspendi.
Vi-te à margem das águas debruçada
A paixão dos meus sonhos, — tão sonhada
Vi-a, encontrei-a em ti.

Maga estrela pendente do horizonte
E curva sobre o mar
Vieste à noite conversar comigo;
Mas a aurora chegou — ao leito antigo
Vai, é mister voltar.

Deixa-me, não te curves sobre as flores
Deste leito de azul;
Molhastes os teus vestidos, foge embora!
Não te despenhes, — vem o mar agora
Encapelado ao sul.

Enxuga agora ao sol as tuas roupas
E deixa-me seguir;
Não sei qual a torrente que me espera;
Vai, não prendas a tua primavera,
Onde é fundo o porvir!


Machado de Assis
(In Correio Mercantil, 21 out. 1859)
In Poesia Completa - Dispersas, 1854-1939



Fonte: http://www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=17520

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017





I

Amo o vento da noite sussurrante
A tremer nos pinheiros
E a cantiga do pobre caminhante
No rancho dos tropeiros;

E os monótonos sons de uma viola
No tardio verão,
E a estrada que além se desenrola
No véu da escuridão;

A restinga d’areia onde rebenta
O oceano a bramir,
Onde a lua na praia macilenta
Vem pálida luzir;

E a névoa e flores e o doce ar cheiroso
Do amanhecer na serra,
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu de minha terra;

E o longo vale de florinhas cheio
E a névoa que desceu,
Como véu de donzela em branco seio,
As estrelas do céu.

Manuel Antônio Álvares de Azevedo




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quarta-feira, 13 de dezembro de 2017





A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino,
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Fliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.

Adélia Prado



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