segunda-feira, 10 de julho de 2017



A Gentil Camponesa
MOTE

Tu és pura e imaculada,
Cheia de graça e beleza;
Tu és a flor minha amada,
És a gentil camponesa.

GLOSAS

És tu que não tens maldade,
És tu que tudo mereces,
És, sim, porque desconheces
As podridões da cidade.
Vives aí nessa herdade,
Onde tu foste criada,
Aí vives desviada
Deste viver de ilusão:
És como a rosa em botão,
Tu és pura e imaculada.

És tu que ao romper da aurora
Ouves o cantor alado...
Vestes-te, tratas do gado
Que há-de ir tirar água à nora;
Depois, pelos campos fora,
É grande a tua pureza,
Cantando com singeleza,
O que ainda mais te realça,
Exposta ao sol e descalça,
Cheia de graça e beleza.

Teus lábios nunca pintaste,
És linda sem tal veneno;
Toda tu cheiras a feno
Do campo onde trabalhaste;
És verdadeiro contraste
Com a tal flor delicada
Que só por muito pintada
Nos poderá parecer bela;
Mas tu brilhas mais do que ela,
Tu és a flor minha amada.

Pois se te tenho na mão,
Inda assim acho tão pouco,
Que sinto um desejo louco:
Guardar-te no coração!...
As coisas mais belas são
Como as cria a Natureza,
E tu tens toda a grandeza
Dessa beleza que almejo,
Tens tudo quanto desejo,
És a gentil camponesa

António Aleixo, 
in "Este Livro que Vos Deixo..." 


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 9 de julho de 2017





A rosa de Hiroxima

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Vinicius de Moraes


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 8 de julho de 2017




O Peixe

Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.

Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.

O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.

Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!


Patativa do Assaré


Foto: By Owen Perry

sexta-feira, 7 de julho de 2017




Eu amo uma mulher
que não existe.
Mas vejo-a  sempre,
conversamos muito
e quero-lhe bem.
Tem muitas faces,
não sei seu nome
e, se nome tem.
Só sei que quando
eu estou triste,
ela então existe
e de repente vem
confortar-me a alma,
trazer-me calma
e me fazer bem.
E a quem me indaga:
- Que forma vaga
de amar alguém?
Eu nada escondo
e então respondo
como convém:
- É meu coração,
na solidão,
sem ter ninguém.


Ronaldo Cunha Lima


https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 6 de julho de 2017




Horas Rubras
Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço olaias em flor às gargalhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p'las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve e branca e mist'riosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!


Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"


Foto: Pesquisa Google

quarta-feira, 5 de julho de 2017




Beber Toda a Ternura
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces


Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'


Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 4 de julho de 2017




II
Ó se o recordo, e bem! numa invernia brava,
O ríspido e glacial Dezembro decorria
E, da lareira ao chão, cada brasa lançava
O supremo fulgor da sua lenta agonia.
E eu a esperar, em vão, a aurora que tardava
Queria, em vão, achar nessa velha teoria
Contida no volume antigo que estudava,
Um consolo sequer à dor que me pungia.
Em vão! consolo, em vão! à minha dor profunda
Em vão! repouso, em vão! à alma que se me inunda
Desta imortal saudade aos prantos imortais.
Porque jamais se esquece, alma consoladora
Como essa que nos céus é chamada Eleonora,
Nome que nunca mais ouvirei, nunca mais!

Emílio de Meneses

Fot: https://www.pinterest.pt/cinafraga/