terça-feira, 27 de junho de 2017





É tão gentil e tão honesto o ar
de minha Dama, quando alguém saúda,
que toda boca vai ficando muda
e os olhos não se afoitam de a fitar.

Ela assim vai sentindo-se louvar
na piedosa humildade em que se escuda,
qual fosse um anjo que dos céus se muda
para uma prova dos milagres dar.

Tão afável se mostra a quem a mira
que o olhar infunde ao coração dulçores
que só não sente quem jamais olhou-a.

E quando fala, dos seus lábios voa
Uma aura suave, trescalando amores,
que dentro d’alma vai dizer: “Suspira!”

Dante Alighieri.

Tradução de Ivo Barroso.



Fito: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 24 de junho de 2017




O VERÃO PARTIU

O verão partiu
e nunca devia ter vindo
será quente o sol
mas não pode ser só isto

tudo veio para partir
nas minhas mãos tudo caiu
corola de cinco pétalas
mas não pode ser só isto

nenhum mal se perdeu
nenhum bem foi em vão
à luz clara tudo arde
mas não pode ser só isto

agarra-me a vida
sob a sua asa intacto
sempre a sorte do meu lado
mas não pode ser só isto

nem uma folha se consumiu
nem uma vara quebrada
vidro límpido é o dia
mas não pode ser só isto



Arseny Tarkovski


* Traduções de Paulo da Costa Domingos, publicada na revista escamandro.


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 23 de junho de 2017




Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações:

Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

          O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:


Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinqüenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?

Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
- Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
maquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
                     "Monangambééé"

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

                       "Monangambééé"

António Jacinto, poeta angolano

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 22 de junho de 2017




A Voz

É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,

Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enleado!

O mar azul se encrespa
Coa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.

E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.

Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.

Mas despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:

E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.

Turba-se o vasto oceano,
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor,

E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.

Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.

Era blasfema ideia,
Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:

«Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,

E o frémito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,

Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso,

Tipo da vida do homêm,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.

Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,

Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia,
Do raio ao cintilar.

Ele o mandou: a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!»

Oh, sim, torva blasfémia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;

Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.


Alexandre Herculano, in 'A Harpa do Crente'


quarta-feira, 21 de junho de 2017




Fímbria de melancolia,
memória incerta da dor,
ouço-a no gravador,
no fado que não se ouvia
quando ouvia o seu clamor.

Porque era já no passado
o presente dessa hora
e que me ressoa agora
a um outro mais alongado.

Assim a dor que se sente
no outro obscuro de nós
nunca fala a nossa voz
mas de quem de nós ausente,
só a nós próprios consente
quando não estamos nós
mas mais sós do que ao estar sós.

Onde então estamos nós?

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'


Fonte: http://www.citador.pt/

terça-feira, 20 de junho de 2017





As rosas de Saadi

Eu pretendia esta manhã te trazer rosas;
Mas pus tantas em minhas vestes rigorosas
Que os nós cerrados não as puderam guardar.
Os nós se romperam. As rosas se soltaram
No vento, até chegar ao mar todas voaram.
Seguiram a água para não mais voltar.
A onda se viu de um vermelho incendiado.
À noite o vestido ainda está perfumado…
Respira em mim o aroma para recordar.



Les roses de Saadi
in: Poésies Inédites, 1860.
J’ai voulu ce matin te rapporter des roses ;
Mais j’en avais tant pris dans mes ceintures closes
Que les nœuds trop serrés n’ont pu les contenir.


Les nœuds ont éclaté. Les roses, envolées
Dans le vent, à la mer s’en sont toutes allées.
Elles ont suivi l’eau pour ne plus revenir ;


La vague en a paru rouge et comme enflammée.
Ce soir, ma robe encore en est tout embaumée…
Respires-en sur moi l’odorant souvenir.

 Marceline DesbordesValmore


 (trad. Sandra Stroparo & Caetano W. Galindo)
Referência:
DESBORDES-VALMORE, Marceline. 
Poésies. Préface et choix d’Yves Bonnefoy. 
Paris: Gallimard, 1983.



Fonte: https://escamandro.wordpress.com

Foto: Julia Borodina

segunda-feira, 19 de junho de 2017




O AÇUDE

Há neste açude lendas afogadas,
deuses dormindo o sono que os transcende.
Nenhuma sede irá buscá-lo incauta.
Nele, porém, dois cães vigiam sempre.

Não há peixes no açude, nem há vagas.
A seu apelo mudo na atende
O vento viajor das madrugadas.
O açude é um cemitério diferente.

Os mesmos cães na ladram. Pelo afã
Soment é que parecem-nos dois cães.
O açude é um muro longo, erguido em gelo,

Que por castigo os deuses sem destino
tornaram mausoléu, doando ao limo
o segredo final para rompê-lo.

Affonso Ávila

 (De O AÇUDE e Sonetos da Descoberta, 1953)


Foto: Jukka Vuokko