sexta-feira, 23 de junho de 2017




Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações:

Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

          O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:


Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinqüenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?

Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
- Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
maquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
                     "Monangambééé"

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

                       "Monangambééé"

António Jacinto, poeta angolano

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 22 de junho de 2017




A Voz

É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,

Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enleado!

O mar azul se encrespa
Coa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.

E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.

Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.

Mas despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:

E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.

Turba-se o vasto oceano,
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor,

E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.

Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.

Era blasfema ideia,
Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:

«Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,

E o frémito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,

Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso,

Tipo da vida do homêm,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.

Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,

Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia,
Do raio ao cintilar.

Ele o mandou: a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!»

Oh, sim, torva blasfémia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;

Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.


Alexandre Herculano, in 'A Harpa do Crente'


quarta-feira, 21 de junho de 2017




Fímbria de melancolia,
memória incerta da dor,
ouço-a no gravador,
no fado que não se ouvia
quando ouvia o seu clamor.

Porque era já no passado
o presente dessa hora
e que me ressoa agora
a um outro mais alongado.

Assim a dor que se sente
no outro obscuro de nós
nunca fala a nossa voz
mas de quem de nós ausente,
só a nós próprios consente
quando não estamos nós
mas mais sós do que ao estar sós.

Onde então estamos nós?

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'


Fonte: http://www.citador.pt/

terça-feira, 20 de junho de 2017





As rosas de Saadi

Eu pretendia esta manhã te trazer rosas;
Mas pus tantas em minhas vestes rigorosas
Que os nós cerrados não as puderam guardar.
Os nós se romperam. As rosas se soltaram
No vento, até chegar ao mar todas voaram.
Seguiram a água para não mais voltar.
A onda se viu de um vermelho incendiado.
À noite o vestido ainda está perfumado…
Respira em mim o aroma para recordar.



Les roses de Saadi
in: Poésies Inédites, 1860.
J’ai voulu ce matin te rapporter des roses ;
Mais j’en avais tant pris dans mes ceintures closes
Que les nœuds trop serrés n’ont pu les contenir.


Les nœuds ont éclaté. Les roses, envolées
Dans le vent, à la mer s’en sont toutes allées.
Elles ont suivi l’eau pour ne plus revenir ;


La vague en a paru rouge et comme enflammée.
Ce soir, ma robe encore en est tout embaumée…
Respires-en sur moi l’odorant souvenir.

 Marceline DesbordesValmore


 (trad. Sandra Stroparo & Caetano W. Galindo)
Referência:
DESBORDES-VALMORE, Marceline. 
Poésies. Préface et choix d’Yves Bonnefoy. 
Paris: Gallimard, 1983.



Fonte: https://escamandro.wordpress.com

Foto: Julia Borodina

segunda-feira, 19 de junho de 2017




O AÇUDE

Há neste açude lendas afogadas,
deuses dormindo o sono que os transcende.
Nenhuma sede irá buscá-lo incauta.
Nele, porém, dois cães vigiam sempre.

Não há peixes no açude, nem há vagas.
A seu apelo mudo na atende
O vento viajor das madrugadas.
O açude é um cemitério diferente.

Os mesmos cães na ladram. Pelo afã
Soment é que parecem-nos dois cães.
O açude é um muro longo, erguido em gelo,

Que por castigo os deuses sem destino
tornaram mausoléu, doando ao limo
o segredo final para rompê-lo.

Affonso Ávila

 (De O AÇUDE e Sonetos da Descoberta, 1953)


Foto: Jukka Vuokko

domingo, 18 de junho de 2017




Retrato do Poeta Quando Jovem

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.



José Saramago


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 17 de junho de 2017




Limite

A mulher está perfeita.
Seu corpo
Morto enverga o sorriso de completude,
A ilusão de necessidade
Grega voga pelos veios da sua toga,
Seus pés
Nus parecem dizer:
Já caminhamos tanto, acabou.
Cada criança morta, enrodilhada, cobra branca,
Uma para cada pequena
Tigela de leite vazia.
Ela recolheu-as todas
Em seu corpo, como pétalas
Da rosa que se encerra, quando o jardim
Enrija e aromas sangram
Da fenda doce, funda, da flor noturna.
A lua não tem porque estar triste
Espectadora de touca
De osso; ela está acostumada.
Suas crateras trincam, fissura.

Sylvia Plath

(Tradução  Luiz Carlos de Brito Rezende)



https://www.pinterest.pt/cinafraga/