quarta-feira, 6 de abril de 2022

 

 

 


 

Slava Ukraini  🇺🇦

 

Um novo milagre é preciso  

 

A sua cidade já não existe.

 Sem rosas

Nem quimeras de marear

As rotas, escuta-se serodiamente

Apenas o intrínseco alvoroço de vozes ausentes

De sílabas híbridas,

Um hálito dos corpos ébrios de sede

E do olhar enigmático de alguns ciganos

Com a alma suja de desperdícios

Onde só as altivas sobras de solidão mancham

A visão retemperadora do astro-rei

Queimando o mondego

Quando os peixes se mutilam

Desassossegando as águas de guelras vermelhas

No regaço alquímico de Isabel,

 

Hoje o rio secou o assombro

E a infinda maresia da embarcação

Dos náufragos primordiais

Desapareceu. Foi abandonada por toda a gente,

Mas no centro da cidade

Está oculto um inexplicável oceano

Para aqueles que nunca o ousarem sulcar,

O sustento da pedra onde se alimentam os corpos

Dilacerou a sua unidade de utopia

Obstruindo o percurso da boca às raízes

E  depois veio a areia e engoliu-a.

 

Um novo milagre é preciso

E embeber a inutilidade de um poema é preciso,

Deveremos ser bilíngues de rotas e casas

Em uma única cidade

Pois é nela que a nudez de quem fere e sangra

Não questiona o heróico murmúrio do estorvo do verbo.

 

 

João Rasteiro

 

 

 

João Rasteiro é um poeta e ensaísta português. É Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra.