sábado, 31 de outubro de 2020

 
 
 

Dá-me o puro cansaço após o amor

à fresca sombra da tarde.

Agora que é ido o desejo, concede-te

este breve instante de paz e repousa.

Toda a minha vida possui isto:

uma boca a brilhar sozinha em meu peito.

Mas a carne é sonho ao tocar-se nela,

ao senti-la fremente em nossos lábios indefesos;

a carne é já cinza, esquecimento,

frio desolador que se anuncia.

Porém, vê como arde a tua boca

negando o vazio que sempre perto nos aguarda;

vê como arde o meu peito

com um resplendor que por ti jamais se apaga.

“Porquê beijar teus lábios se se sabe que a morte

está próxima, se se sabe que amar é esquecer

a vida apenas, fechar os olhos ao sombrio

presente para os abrir aos radiosos limites

de um corpo?”

Porquê respirar esta luz carnal frente ao curso

de um poderoso rio que cruelmente nos ignora

mas onde de súbito uma gota de orvalho esplende

como uma lágrima nossa?

Não, também eu não quero acreditar numa verdade

que nos livros se lê como uma água,

também eu não posso aceitar essa futura agonia

que reduz a um último estertor

a cálida juventude de um amado corpo.

Quero crer, oh sim, crer que a luz que das tuas mãos

se evola subsiste à melodia triste dessa água,

passageira, quero acreditar no talismã vermelho

que pulsa feliz

em meu peito enamorado só porque o teu nome

fulgura nele como uma estrela obstinada,

nesses olhos que não são feridas mas apenas

frescas margens,

que me devolvem, cada dia, incólume,

o azul das ondas

que contra mim, mortais, embatem.

 

Gonçalo Salvado, in IRIDISCÊNCIAS (Sirgo, 2003)

 

 

Pascal Chove Painter