sexta-feira, 17 de abril de 2020





Nova Era

(é um poema de amor )

Não! Não sei se sei, amar ainda.
Depois do caminho das quedas
Deste decair, que o tempo pesa!
Não sei, se sei amar.
Há uma certa incerteza no beijar
Olhar, ver esse rosto vincado
Ler nele o poema que me é dado.
Tenho de ser amorosa, perspicaz
Para ler a curvatura, que a vida teima dar-me.
A esse vulto tão esguio, modelado pelo suor e pelos gestos consumidos.
Ler! certeza ter, que te foste inclinando
Para proteger aquela com quem partilhavas teu prazer.
O tempo corre, leva-nos atrás.
O espírito engelha, o riso quebra
Ferem os estilhaços a retina
Ai! Aqueles olhos claros de esperança
Aquele rir tão de menina.
Olho-te, procuro em ti a chave de tu’alma.
Só a dos segredos se me oferece
Ofertas-me os lábios como dantes
Tens nos dedos mel suave
A febril ânsia da vontade
A lonjura do tempo gravou em nós cansaços.
Perdemo-nos no sublime encontro de amar…
Mas neste amar maduro
Já não sei amar-te como antes.



Augusta Maria Gonçalves de Carvalho


16/04/2020.

quarta-feira, 15 de abril de 2020






Quanto sabe a flor! Sabe ser branca
quando é jasmim, e roxa quando é lírio.
Sabe abrir o botão
sem reservar doçuras para si,
ao olhar ou à abelha.
Permite sorridente
que se faça mel com sua alma.
Quanto sabe a flor! Sabe deixar-se
colher por ti, para que tu a leves,
erguida, em teu peito numa noite.
Sabe fingir, quando no dia seguinte
de ti a afastas, que não é a mágoa
por tu a abandonares que a faz murchar.
Quanto sabe a flor! Sabe o silêncio;
e possuindo uns lábios tão formosos
sabe calar o «ai!» e o «não», e ignora
a negativa e o soluço.
Quanto sabe a flor! Sabe entregar-se,
dar, dar tudo o que é seu a quem a quer,
sem pedir mais que isso: que lhe queira.
Sabe, simplesmente sabe, amor.



Pedro Salinas



Espanha, Madrid 1891 – EUA, Boston 1951
in Rosa do Mundo -  2001 Poemas Para o Futuro
Trad. de José Bento
Editor: Assirio & Alvim




Fonte: cantodaalma.blogspot.com


Christian Schloe Artist 




terça-feira, 14 de abril de 2020





Poema do silêncio




Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...
O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.
Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!
Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...
Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.




José Régio

quarta-feira, 18 de março de 2020


Pedro Barroso: Calou-se para sempre o artesão das canções
O músico que, mais do que letras,  escrevia poemas






Cmpanheira

     
 
Deixei pousar minha boca em tua fronte
toquei-te a pele como se fosses água
escorreguei em teu ventre como o vento
e atravessei-te em mim como se fosse farpa
    
Deixei crescer esta vontade devagar
deixei crescer no peito um infinito
ai eu morri de morte lenta no desejo
em cada beijo abafei um grito
 
Quando desfolho o livro velho da memória
sinto que o tempo passado à tua beira
é um espaço bom que há na minha história
e foi bonito ter dito companheira
         
Inventei mil paisagens no teu peito
e rebentei de loucura e fantasia
quando me olhavas devagar com esse geito
eu descobri tanta coisa que não via
   

Havia em ti uma forma grande de incerteza
que conseguias converter em alegria
havia em ti um mar salgado de beleza
que me faz sentir saudades em cada dia
   
Quando desfolho o livro velho da memória
sinto que o tempo passado à tua beira
é um espaço bom que há na minha história
e foi bonito ter dito companheira



Pedro Barroso


quinta-feira, 5 de março de 2020






Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.

1912

Anna Akhmátova, poetisa russa (1889-1966)