sexta-feira, 29 de março de 2019





Os Seios


Como serpente arquejante
Se enrosca em férvida areia,
Meu ávido olhar se enleia
No teu colo deslumbrante.

Quando o descobres, no ar
Morno calor se dissolve
Do aroma, em que ele se envolve,
Como em neblina o luar.

Se ao corpo te enrosco os braços,
A terra e os céus estremecem,
E os mundos febris parecem
Derreter-se nos espaços!

E tu nem sequer presumes
Que então, querida, até creio,
Sorver, desfeito em perfumes,
Todo o sangue do teu seio.

Depois que aspiro, ansiado,
Do teu níveo colo o incenso,
Minh'alma semelha um lenço
De viva essência molhado.

Deixa que a louca se deite
Nesse torpor, que extasia,
E que o vinho do deleite
Me espume na fantasia;

Pois não há ópio ou haschis
Que me abrilhante as idéias
Como as fragrâncias sutis
Que fervem nas tuas veias!


Teófilo Dias, político e poeta brasileiro (1854-1889).




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


segunda-feira, 25 de março de 2019





Êxtase Búdico




Abre-me os braços, Solidão profunda,
Reverência do céu, solenidade
Dos astros, tenebrosa majestade,
Ó planetária comunhão fecunda!

Óleo da noite, sacrossanto, inunda
Todo o meu ser, dá-me essa castidade,
As azuis florescências da saudade,
Graça das Graças imortais oriunda!

As estrelas cativas no teu seio
Dão-me um tocante e fugitivo enleio,
Embalam-me na luz consoladora!

Abre-me os braços, Solidão radiante,
Funda, fenomenal e soluçante,
Larga e búdica Noite redentora!



João da Cruz e Souza (1861-1898)





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


sábado, 23 de março de 2019







Soneto da esperança


Tempo de azul e não. Desencantado
reino do que não foi, mundo postiço,
ontem feito de agora, hoje passado:
na essência do não-ser o instante omisso.

(Margaridas da tarde, onde o seu viço?
Choro de água nos ares, lento e alado
caminho cor de sonhos? Insubmisso
mar sem datas, desfeito e recriado?)

Suaves rechãs por onde a mão do vento
esculpia no verde a sombra exata
e as imagens que o olhar já não alcança.

Aventuras tão só do pensamento:
arco de azul, a tarde era a fragata
supérflua, para o exílio da esperança.)




Waldemar Lopes, poeta brasileiro (1911-2006).



Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 22 de março de 2019





Tu, Só Tu…



A Estrela d’Alva desaparecia
Quando eu parti naquela madrugada,
E a doce aurora, tímida e rosada.
Das nuvens de ouro levantava o dia.

Numa palmeira, que no espaço abria
O verde leque, para o céu voltada.
Da áurea garganta uma ave apaixonada
Cavatinas alegres despedia.

Manhã tão linda: o prado um firmamento
Glauco e cheiroso, estrelas multicores,
O chão bordando num deslumbramento!

E eu vendo o campo, eu vendo o céu tranqüilo,
Pensava em ti, dona das minhas dores;
Morta: só tu darias vida àquilo.



Guimarães Passos, jornalista e poeta brasileiro (1867-1909).





Fonte:  https://nuhtaradahab.wordpress.com/2013/03/17/guimaraes-passos-poesias-avulsas/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 20 de março de 2019






Curso da vida


Coisas maiores querias tu também, mas o amor
A todos vence, a dor curva ainda mais,
E não é em vão que o nosso círculo
Volta ao ponto donde veio!
Para cima ou para baixo! Não sopra em noite sagrada,
Onde a Natureza muda medita dias futuros,
Não domina no Orco mais torto
Um direito, uma justiça também?
Foi isso que aprendi. Pois nunca, como os mestres mortais,
Vós, ó celestiais, ó deuses que tudo mantendes,
Que eu saiba, nunca com cuidado
Me guiastes por caminho plano.
Tudo experimente o homem, dizem os deuses,
Que ele, alimentado com forte mantença, aprenda a ser grato por [tudo,
E compreenda a liberdade
De partir para onde queira.



Friedrich Hölderlin, escritor alemão (1770- 1843).




Fonte: https://www.revistaprosaversoearte.com/friedrich-holderlin-poemas/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


terça-feira, 19 de março de 2019






Pai, a Minha Sombra és Tu
a cadeira está vazia, um corpo ausente
não aquece a madeira que lhe dá forma

e não ouço o recado que me quiseste dar
nem a tua voz forte que grita meninos
na hora de acordar
ouço o teu abraço, no corredor em gaia
e os olhos molhados pela inusitada despedida

o sol foge
mas o crepúsculo desenha a sombra que
tenho colada aos pés
ou o espelho, coberto com a tua face

pai, digo-te
a minha sombra és tu

Jorge Reis-Sá, in "A Palavra no Cimo das Águas"




Fonte: http://www.citador.pt/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 16 de março de 2019







Anda, Vem

Anda, vem... por que te négas,
Carne morêna, toda perfume?
Por que te cálas,
Por que esmoreces
Boca vermêlha, - rosa de lume!

Se a luz do dia
Te cóbre de pêjo,
Esperemos a noite presos n'um beijo.

Dá-me o infinito goso
De contigo adormecer,
Devagarinho, sentindo
O arôma e o calôr
Da tua carne, - meu amôr!

E ouve, mancebo aládo,
Não entristeças, não penses,
- Sê contente,
Porque nem todo o prazer
Tem peccado...

Anda, vem... dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos;

Tenho Saudades da vida!
Tenho sêde dos teus beijos!


António Botto, poeta português (1897-1959).

in 'Canções'




Fonte: http://www.citador.pt/
Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/