quinta-feira, 25 de outubro de 2018






Eu não Voltarei

Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.


Juan Ramón Jiménez




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segunda-feira, 22 de outubro de 2018






Uma Canção

Roubar dos prados, roubar as altas colinas verdes,
Violentar flores do meu pomar, deixe-me juntar
Uma coroa de flores, pomar e narcisos,
Porque o meu amor é justo e branco e compassivo.

Hoje o ímpeto vibra suas frases mais delicadas,
Flores com seu incenso fizeram bêbado o ar,
Deus se inclinou para dourar os corações de margaridas,
Porque o meu amor é bondoso e branco e justo.

Hoje o sol beijou a filha da roseira,
E triste Narciso, acólito pálido de Primavera,
Pende a cabeça e sorri para a água,
Porque o meu amor é bondoso e justo e branco.


Alfred Douglas, poeta britânico (1870- 1945).



Fonte do poema: http://clubedepoetashomenagens.blogspot.com/2013/09/alfred-douglas.html

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quinta-feira, 18 de outubro de 2018





São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.



Vinícius de Moraes,
Diplomata, poeta e compositor brasileiro (1913-1980).





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quarta-feira, 17 de outubro de 2018





Uma Voz Na Pedra

Não sei
Se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


António Ramos Rosa, poeta português (1924- 2013)



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domingo, 14 de outubro de 2018







Serás feliz e jovem mais que tudo
Pois se és jovem, a vida que vestires
Há de tornar-se tu;e se és feliz,
Tal qual deseja a vida assim serás.
Meninas (os) precisam de meninos (as)
E basta: posso amar somente aquela
Cujo mistério é dar espaço à carne
E arrebatar o tempo à alma do homem
E quanto a cogitar se deus proíbe
E (em sua graça) puro amor se exclui:
Pois nisso irão razão,tumba fetal
Dita progresso, e injuízo final
Digo que aprendo canto com um pássaro
Mas não ensino a não dançar estrelas.


E. E. Cummings, poeta estado-unidense (1894- 1962).





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sexta-feira, 12 de outubro de 2018






Noite

Agora os três lados da escuridão se adensam
     com a chegada da aurora
e a mão ainda não tem coragem de atravessar o sólido
     ar rumo à folha branca na mesa.

Pois a razão não consegue honestamente resistir a meu
     senso de limites! Hoje não posso
mais deixar que a mão escreva aquelas frases descuidadas
     que antes me alegravam tanto.

São muitas as idéias que te assaltam no escuro.
     E fácil confundir a euforia
da meia-noite, e a cabeça febril criada pelo excesso
     de cansaço e café, com agudeza mental.

Mas é claro que ainda não estraguei de todo o meu
     cérebro com essas loucas vigílias.
Sei que não há mérito na excitação, por mais intensa
     que seja; não acho que seja talento.

Seria uma vergonha ignorar essa pobreza! No entanto,
     é grande a tentação. Como são inocentes
os gestos: destruir a noite anônima dando a cada coisa
     o seu verdadeiro nome.

Tento manter imóvel a minha mão, mas cada objeto
     me namora, mostra-me o quanto
é belo, me convida, a cada movimento que eu faço,
     a render homenagem a cada uma

dessas coisas que me cercam, convencidas de que as amo,
     e suas vozinhas me imploram
que em minha canção celebre a sua alma - é para isso
     que elas precisam de mim.

Eu gostaria de agradecer à vela e, para que todos
     conhecessem sua luz,
à minha volta lançaria adjetivos como incontáveis
     carícias. Mas me calo.

Na tortura do silêncio, ah!, que dor eu sinto:
      a de não dizer, ainda que
comum só palavra, o esplendor de tudo o que meu amor olha,
na escuridão, com olhos atentos.

De que me envergonho? Não estou livre, afinal,
      numa casa vazia, em meio à neve,
para escrever, ainda que mal? Para dizer, pelo menos,
      o nome da casa, da neve, da janela?

A folha de papel é indefesa: peço a Deus que me dê
      humildade. E aqui fico,
diante da luz clara e engenhosa da vela que ilumina
      o meu rosto já mergulhando no sono.



Bella Akhmadulina, poetista russa (1937- 2010).



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quinta-feira, 4 de outubro de 2018





A Metáfora 


No ano passado
escrevi um poema
que começava assim:
"sinto a lâmina do teu ciúme no meu peito"
- era uma metáfora, claro.
E não suspeitei.

Agora,
que me espetaste a faca de descascar batatas entre as costelas,
único desfecho lógico para o nosso amor;
agora, que sinto a lâmina
e o sangue morno a alastrar-me na camisa,
sei, finalmente e tarde demais,

a fraca expressividade das metáforas.



José Luís Peixoto






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