sexta-feira, 12 de outubro de 2018






Noite

Agora os três lados da escuridão se adensam
     com a chegada da aurora
e a mão ainda não tem coragem de atravessar o sólido
     ar rumo à folha branca na mesa.

Pois a razão não consegue honestamente resistir a meu
     senso de limites! Hoje não posso
mais deixar que a mão escreva aquelas frases descuidadas
     que antes me alegravam tanto.

São muitas as idéias que te assaltam no escuro.
     E fácil confundir a euforia
da meia-noite, e a cabeça febril criada pelo excesso
     de cansaço e café, com agudeza mental.

Mas é claro que ainda não estraguei de todo o meu
     cérebro com essas loucas vigílias.
Sei que não há mérito na excitação, por mais intensa
     que seja; não acho que seja talento.

Seria uma vergonha ignorar essa pobreza! No entanto,
     é grande a tentação. Como são inocentes
os gestos: destruir a noite anônima dando a cada coisa
     o seu verdadeiro nome.

Tento manter imóvel a minha mão, mas cada objeto
     me namora, mostra-me o quanto
é belo, me convida, a cada movimento que eu faço,
     a render homenagem a cada uma

dessas coisas que me cercam, convencidas de que as amo,
     e suas vozinhas me imploram
que em minha canção celebre a sua alma - é para isso
     que elas precisam de mim.

Eu gostaria de agradecer à vela e, para que todos
     conhecessem sua luz,
à minha volta lançaria adjetivos como incontáveis
     carícias. Mas me calo.

Na tortura do silêncio, ah!, que dor eu sinto:
      a de não dizer, ainda que
comum só palavra, o esplendor de tudo o que meu amor olha,
na escuridão, com olhos atentos.

De que me envergonho? Não estou livre, afinal,
      numa casa vazia, em meio à neve,
para escrever, ainda que mal? Para dizer, pelo menos,
      o nome da casa, da neve, da janela?

A folha de papel é indefesa: peço a Deus que me dê
      humildade. E aqui fico,
diante da luz clara e engenhosa da vela que ilumina
      o meu rosto já mergulhando no sono.



Bella Akhmadulina, poetista russa (1937- 2010).



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/