quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018





Hora Vermelha

Por que vieste, pensamento?
Já me bastava o Mar violento,
Já me bastava o Sol que ardia…
P’los meus sentidos escorria
não sei lá bem que seiva forte
que a carne toda me deixava
qual uma flor ou uma lava
num riso aberto contra a Morte.

Já me bastava tudo isto.
Mas tu vieste, pensamento,
e vieste duro, turbulento.
Vieste com formas e com sangue:
erectos seios de mulher,
as carnes róseas como frutos.

Boca rasgada num pedido
a que se quer e se não quer
dizer que não.
Os braços longos estendidos.
A mão em concha sobre o sexo
que nem a Vénus de Camões.

Aí!, pensamento,
deixa-me a calma da Poesia!
Aqui na praia só com ela,
virgem castíssima, sincera!…
Sua mão branca saberia
chamar cordeiro ao Mar violento,
Pôr meigo, meigo, o Sol que ardia.
Mas tu vieste, pensamento.
Tua nudez, que me obsidia,
logo, subtil, encheu de alento
velhos desejos recalcados,
beijos mordidos
antes de os ver a luz do Dia.

Vai-te depressa, pensamento!
Deixa-me a calma da Poesia.
Fique em minh’alma o só perfume
da cerca alegre de um convento.

Os meus sentidos embalados
numa suave melodia.
(Ah!, não nos quero desgrenhados
como quem volta de uma orgia).

E então meus lábios mais serenos
do que se orassem sobre um berço,
sorrindo à Vida,
sorrindo à Morte.
Ah!, não nos quero assim grosseiros,
ébrios, torcidos,
como depois de um vinho forte.

Sebastião da Gama, in 'Cabo da Boa Esperança'



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018





Esquecimento

Se queres inda ver como escondida
Guardo no peito a tua imagem pura,
Imagem que no céu da minha vida
É como um sol ardente que fulgura;

Convida o coração na sepultura
A viver e pulsar por ti; convida
Minh'alma para amar de novo; cura
A, que lhe abriste, cáustica ferida...

Só pedira a paixão com que me iludo
Que um raio apenas d'essa luz me desses,
E uma palavra do teu lábio mudo;

Mas nem ouves, sequer, as minhas preces;
E enquanto, para amar-te, esqueço tudo,
Tu, por um nada, o meu amor esqueces.




Osório Duque-Estrada, 
poeta, crítico literário e teatrólogo brasileiro 1870/1927



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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018





Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.

Amei-te com os olhos
o espelho doido dos olhos
e a sede inextinguível da boca.

Amei-te com a pele
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.

Amei-te com as mãos
As mesmas com que te digo adeus.

In “As Pequenas Palavras”
Guimarães Editores - 1987

Rosa Lobato de Faria



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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018




Seria o Amor Português

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”



Fonte: http://www.citador.pt/

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quarta-feira, 31 de janeiro de 2018




A Mais Bela Noite do Mundo
Hoje,
será o fim!

Hoje
nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!

Nem o luar, pano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
- Menino! acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores – o dia!

- Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!

(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).

Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua...
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.

- Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espectáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.

Amanhã,
será o ultrapassar outra curva
no teu caminho destinado.

(Era esta a voz do papão
que acendia a vela, tinha regaço de sombra
e velava
as noites da minha rua e a minha vida
e pintava-se de belo
na máscara de papelão).

Hoje,
será o fim!

Hoje,
nem a sombra do que há-de vir,
nem os mestres, nem os amigos, nem os livros,
nem a fragilidade dos meus pés
feitos de barro e cansaço!
Todas as minhas revoltas domadas,
todos os meus gestos em meio
e as minhas palavras sufocadas
terão a sua hora de viver e amar!

Hoje,
nem o cadáver a sorrir na morgue,
nem as mãos que ficaram angustiosas,
arrepiadas
no seu medo de findar!

Hoje,
será a mais bela noite do mundo!

Fernando Namora, in 'Mar de Sargaços'


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terça-feira, 30 de janeiro de 2018




Leitura

Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.

Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia
de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.

Carlos de Oliveira, in 'Pastoral'




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segunda-feira, 29 de janeiro de 2018




II

Que hei de fazer, amor, sem teu cuidado
quando novembro chegue às minhas veias?
Já não trarei as mãos, como hoje, cheias
de açucenas, do teu jardim velado.

Porém, desse jardim por mim guardado
entre estas folhas de sonetos cheias,
restará a saudade - e em suas peias
um perfume de amor, de amor calado.

E quando perguntarem: a isto, que era?
Por que uma tal lembrança murcha e rota
no teu velho caderno de poesias?

Eu lhes direi que foi a primavera!
O sumo dos tens lábios, gota a gota,
semeando as ilusões mais fugidias.

Rafael Duyos
(Espanha 1906)



Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/

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