segunda-feira, 29 de janeiro de 2018




II

Que hei de fazer, amor, sem teu cuidado
quando novembro chegue às minhas veias?
Já não trarei as mãos, como hoje, cheias
de açucenas, do teu jardim velado.

Porém, desse jardim por mim guardado
entre estas folhas de sonetos cheias,
restará a saudade - e em suas peias
um perfume de amor, de amor calado.

E quando perguntarem: a isto, que era?
Por que uma tal lembrança murcha e rota
no teu velho caderno de poesias?

Eu lhes direi que foi a primavera!
O sumo dos tens lábios, gota a gota,
semeando as ilusões mais fugidias.

Rafael Duyos
(Espanha 1906)



Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/

Fonte: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018





Eu amei-te; mesmo mesmo agora devo confessar,
Algumas brasas desse amor estão ainda a arder;
Mas não deixes que isso te faça sofrer,
Não quero que nada te possa inquietar.
O meu amor por ti era um amor desesperado,
Tímido por vezes, e ciumento por fim.
Tão terna, tão sinceramente te amei,
Que peço a Deus que outro te ame assim.

Aleksandr Púshkin
(Russia 1799-1837)



Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

Foto: Nadya kulikova

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018





Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.

Fernando Pessoa


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


terça-feira, 23 de janeiro de 2018




Entraste.

A sério, olhaste
a estatura,
o bramido
e simplesmente adivinhaste:
uma criança.
Tomaste,
arrancaste-me o coração
e simplesmente foste com ele jogar
como uma menina com sua bola.
E todas,
como se vissem um milagre,
senhoras e senhoritas exclamaram:
- A esse amá-lo?
Se se atira em cima,
derruba a gente!
Ela, com certeza, é domadora!
Por certo, saiu duma jaula!
E eu de júbilo
esqueci o jugo.
Louco de alegria
saltava
como em casamento de índio,
tão leve,
tão bem me sentia.

Vladimir Maiakóvski


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


sexta-feira, 19 de janeiro de 2018





Urgentemente

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
é urgente destruir certas palavras.
odio, solidão e crueldade,
alguns lamentos
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018




Amor


A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.

E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.

Miguel Torga, in 'Libertação'



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018





Peço a paz
e o silêncio

A paz dos frutos
e a música
de suas sementes
abertas ao vento

Peço a paz
e meus pulsos traçam na chuva
um rosto e um pão

Peço a paz
silenciosamente
a paz a madrugada em cada ovo aberto
aos passos leves da morte

A paz peço
a paz apenas
o repouso da luta no barro das mãos
uma língua sensível ao sabor do vinho
a paz clara
a paz quotidiana
dos actos que nos cobrem
de lama e sol

Peço a paz e o
silêncio

Casimiro de Brito escritor português 1938,
in "Jardins de Guerra"



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/