sexta-feira, 18 de agosto de 2017





Voz Interior

(A João de Deus)

Embebido n'um sonho doloroso,
Que atravessam fantásticos clarões,
Tropeçando n'um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso...

Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céus arroja os seus cachões,
Através d'uma luz de exalações,
Rodeia-me o Universo monstruoso...

Um ai sem termo, um trágico gemido
Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrível, monótono vaivém...

Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem!

Antero de Quental, in "Sonetos"




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quinta-feira, 17 de agosto de 2017




"Ouço os teus passos, Senhor, na praia da minha vida;

No solitário silêncio, no ar do Verão, os planetas e as estrelas do céu fitam com fixo olhar.

A corrente do pensamento flui gentilmente, gentilmente no meu coração.

Os meus olhos estão vigilantes como pássaros sedentos.

Abri os ouvidos nas profundezas do meu coração.

Em que abençoada manhã desfalecerás no tabernáculo da minha alma?

Esquecerei toda a alegria e toda a dor, mergulhado nas águas da felicidade."


Rabindranath Tagore






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quarta-feira, 16 de agosto de 2017





A Vida


Ó grandes olhos outomnaes! mysticas luzes!
Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d'Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n'um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!

    Ó Quarta-feira de Trevas!

Vossa luz é maior, que a de trez luas-cheias:
Sois vós que allumiaes os prezos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outomnaes, cheios de Graça!
Olhos accezos como altares de novena!
Olhos de genio, aonde o Bardo molha a penna!
Ó carvões que accendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no mar andam botando as linhas...
Ó pharolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pyrilampos a allumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligencia pela serra!
Ó Extrema-Uncção final dos que se vão da Terra!
Ó janellas de treva, abertas no teu rosto!
Thuribulos de luar! Luas-cheias d'Agosto!
Luas d'Estio! Luas negras de velludo!
Ó luas negras, cujo luar é tudo, tudo
Quanto ha de branco: véus de noivas, cal
Da ermida, velas do hiate, sol de Portugal,
Linho de fiar, leite de nossas mães, mãos juntas
Que têm erguidas entre cyrios, as defuntas!
Consoladores dos Afílictos! Ó olhos, Portas
Do Céu! Ó olhos sem bulir como agoas-mortas!
Olhos ophelicos! Dois soes, que dão sombrinha...
Que são em preto os Olhos Verdes de Joanninha...
Olhos tranquillos e serenos como pias!
Olhos Christãos a orar, a orar Ave Marias
Cheias de Luz! Olhos sem par e sem irmãos,
Aos quaes estendo, toda a hora, as frias mâos!
Estrellas do pastor! Olhos silenciozos,
E milagrozos, e misericordiozos,
Com os teus olhos nunca ha noites sem luar,
Mesmo no inverno, com chuva e a relampejar!
Olhos negros! vós sois duas noites fechadas,
Ó olhos negros! como o céu das trovoadas...

Mas dize, meu amor! ó Dona de olhos taes!
De que te serve ter uns astros sem eguaes?
Olha em redor, poiza os teus olhos! O que ves?
O mar a uivar! A espuma verde das marés!
Escarros! A traição, o odio, a agonia, a inveja!
Toda uma cathedral de lutas, uma igreja
A arder entre clarões de coleras! O orgulho
Insupportavel tal o meu, e o sol de Julho!
Jezus! Jezus! quantos doentinhos sem botica!
Quantos lares sem lume e quanta gente rica!
Quantos reis em palacio e quanta alma sem ferias!
Quantas torturas! Quantas Londres de mizerias!
Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças!
Quantos suores sem proveito! quantas taças
A trasbordar veneno em espumantes boccas!
Quantos martyrios, ai! quantas cabeças loucas,
N'este macomio do Planeta! E as orfandades!
E os vapores no mar, doidos, ás tempestades!
E os defuntos, meu Deus! que o vento traz á praia!
E aquella que não sae por ter uzada a saia!
E os que sossobram entre a vaidade e o dever!
E os que têm, amanhã, uma lettra a vencer!
Olha essa procissão que passa: um torturado
De Infinito! Um rapaz que ama sem ser amado,
E para ser feliz fez todos os esforços...
Olha as insomnias d'uma noite de remorsos,
Como dez annos de prizão maior-cellular!
Olha esse tysico a tossir, á beira-mar...
Olha o bébé que teve Torre de coral
De lindas illuzões, mas que uma aguia, afinal,
Devorou, pois, ao vel-a ao longe, avermelhada,
Cuidou, ingenua! que era carne ensanguentada!
Quantos são, hoje? Horror! A lembrança das datas...
Olha essas rugas que têm certos diplomatas!
Olha esse olhar que têm os homens da politica!
Olha um artista a ler, soluçando, uma critica...
Olha esse que não tem talento e o julga ter
E aquelle outro que o tem... mas não sabe escrever!
Olha, acolá, a Estupidez! Olha a Vaidade!
Olha os Afflictos! A Mentira na Verdade!
Olha um filho a espancar o pae que tem cem annos!
Olha um moço a chorar seus crueis desenganos!
Olha o nome de Deus, cuspido n'um jornal!
Olha aquelle que habita uma Torre de sal,
Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas,
Mas de outras que chorou, de lagrymas salgadas!
Olha um velhinho a carregar com a farinha
E o filho no arraial, jogando a vermelhinha!
Olha a sair a barra a galera _Gentil_
E a Anna a chorar p'lo João que parte p'ro Brazil!
Olha, acolá, no caes uma outra como chora:
É o marido, um ladrão, que vae «p'la barra fóra!»
Olha esta noiva amortalhada, n'um caixão...

Jezus! Jezus! Jezus! o que hi vae de afflicção!

Ó meu amor! é para ver tantos abrolhos,
Ó flor sem elles! que tu tens tão lindos olhos!
Ah! foi para isto que te deu leite a tua ama,
Foi para ver, coitada! essa bola de lama
Que pelo espaço vae, leve como a andorinha,
A Terra!

    Ó meu amor! antes fosses ceguinha...

António Nobre, in 'Só'


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terça-feira, 15 de agosto de 2017

                                                                     
                                                                                 
                                                                    

                             

                                              Brilhante Estrela

Brilhante estrela, fosse eu estável como tu,
Não em solitário esplendor presa e solta na noite
E observando, com eternos cílios afastados,
Como Eremita insone, paciente da natureza
As águas movediças, em seu trabalho sacerdotal,
Da pura ablução em torno das praias humanas da terra
Ou contemplando a nova máscara, suavemente caída
Da neve sobre os montes, sobre os brejos --
Não, e ainda assim estável, ainda assim imutável
Repousando sobre o peito de meu belo amor (que amadurece)
Sempre acordado, em doce inquietude
Quieta, quietamente ouvindo seu tenro respirar
E assim viver para sempre -- ou então render-se à morte.

Fanny Brawne



Fonte: Faustino, Mário. Poesia Completa e Traduzida. 
São Paulo: Editora Max Limonad. 1985


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segunda-feira, 14 de agosto de 2017




Confusão

Meu coração
é teu coração?
Quem me reflexa pensamentos?
Quem me presta
esta paixão
sem raízes?
Por que muda meu traje
de cores?
Tudo é encruzilhada!
Por que vês no céu
tanta estrela?
Irmão, és tu
ou sou eu?
E estas mãos tão frias
são daquele?
Vejo-me pelos ocasos,
e um formigueiro de gente
anda por meu coração.

Federico García Lorca, in 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes




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domingo, 13 de agosto de 2017




JANDIRA

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis
                                               [ do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés,
Todas as partes do mecanismo tinham
                                              [ importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de
                                              [ Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de
                                             [ Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda
                                            [ de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força
                                            [ das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de
                                           [ Jandira.

E Jandira se casou
E seu corpo inaugurou uma vida nova.
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os
                                          [ seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas
                                          [ que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o
                                  [ princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a
                                        [ cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,   
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e
                                       [ transparente.



Murilo Mendes, poeta brasileiro


Painting By Annick Bouvattier

sábado, 12 de agosto de 2017




Os países inexistentes

- Queres partir comigo para países muito distantes,
Para países que dormem,
Embalados por oceanos que ninguém conhece?

Oh! Vamos juntos! Vamos partir para esses meus
mundos misteriosos!
Levar-te-ei a planícies brancas, cobertas de neve
como as do Alaska.
Verás que há na altura um sol gelado, envolto na poeira
nívea da neve.
E verás que um vento - um vento que uiva nos montes alvos -
Vem beijar teus cabelos cheirosos.

Levar-te-ei a montanhas encantadas, onde habitam
dragões de olhos de fogo.
Verás que no céu as estrelas se desfazem,
Mandando raios doirados coroarem tua fronte serena.
Levar-te-ei às ilhas paradisíacas,
Que estão dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores cheias de sombras são feitas de humanas ternuras
E os pássaros que cantam têm uma voz límpida como violinos.

Levar-te-ei a esses mundos estranhos,
A esses mundos formosos que nunca ninguém viu.

E tu hás de repousar a cabeça no meu peito,
Deslumbrada pelos meus países inexistentes.

Poesias, 1949

Múcio Leão, poeta e jornalista brasileiro



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