segunda-feira, 27 de março de 2023

 

 

 


 

Percorro-te

A língua de cetim

A prolongar o êxtase

As mãos de seda

No rio do teu corpo.

Afloro a nascente:

E num grito

Todo tu és torrente.

É tarde, meu amor

É muito tarde.

O tempo implacável me consome

E destrói o vigor do corpo moço:

Apagou o fulgor do meu olhar

Roubou a altivez do seio cheio

Secou o rio manso do meu ventre

Cobriu de pergaminho a minha mão

É tarde, muito tarde

Mas… por dentro

Ainda bate, por ti, o coração.

 

 

Maria Aurora Carvalho Homem

 

(in Discurso Amoroso, Porto 2006)

 

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

 

 

 


 

 

Para F. M.

 

Esperei por ti nos campos do entardecer

Olhos fechados, deitei-me sobre a relva

Ouvindo sons de passos no balançar das árvores;

Esperando que meus lábios sentissem lábios onde a brisa suave estivera;

O corpo reto para sentir o calor de mãos onde o calor do sol brilhara.

Não vieste. Voltei para dentro

Reclamando que o sol se punha

E o vento estava muito frio

Que as árvores eram muito barulhentas

E melhor seria dormir dentro de casa.

 

Maya Deren

 

 

Maya Deren, nascida Eleanora Derenkovskaya, a 29 de Abril de 1917 em Kiev, Ucrânia. Foi realizadora e teórica cinematográfica norte-americana dos anos 1940 e 1950. Deren também foi coreógrafa, dançarina, poeta, escritora e fotógrafa.

 

 

 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

 

 

 


 

Recordar David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927-1996).

 

 

 

Praia do Paraíso

 

Era a primeira vez que nus os nossos corpos

Apesar da penumbra á vontade se olhavam

Surpresos de saber que tinham tantos olhos

Que podiam ser luz de tantos candelabros

 

Era a primeira vez cerrados os estores

Só o rumor do mar permanecera em casa

E sabias a sal, e cheiravas a limos

Que tivesses ouvido o canto das cigarras

 

Havia mais que céu no céu do teu sorriso

Madrugada de tudo em tudo que sonhavas

Em teus braços tocar era tocar os ramos

 

Que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo

É preciso afinal chegar aos cinquenta anos

Para se ver que aos vinte é que se teve tudo.

 

 

David Mourão-Ferreira