Andava à deriva, sem afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de Úrsula.
Gabril Garcia Marquez
Do livro "Cem anos de Solidão"
Toma-me
Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me agora, antes
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.
Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.
Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.
Hilda Hilst,
Poetisa, escritora e dramaturga brasileira (1930-2004).
Conheço esse sentimento
que é como a cerejeira
quando está carregada de frutos:
excessivo peso para os ramos da alma.
Conheço esse sentimento
que é o da orla da praia
lambida pela espuma da maré:
quando o mar se retira
as conchas são pequenas saudades
que doem no coração da areia.
Conheço esse sentimento
que é o dos cabelos do salgueiro
revoltos pelas mãos ágeis da tempestade:
na hora quieta do amanhecer
pendem-lhe tristemente os braços
vazios do amado corpo do vento.
Conheço esse sentimento
que passa nos teus olhos e nos meus
quando de mãos dadas
ouvimos o Requiem de Mozart
ou visitamos a nave de Alcobaça.
Pedro e Inês
a praia e a maré
o salgueiro e o vento
a verdade e o sonho
o amor e a morte
o pó das cerejeiras
tu.
e eu.
Rosa Lobato Faria, em 'Dispersos'
Murmúrios do mar
"Paga-me um café e
conto-te a minha vida" o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos de uma criança
muito assustada que corria o vento batia-lhe no
rosto com violência a infância inteira disso me
lembro outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo apagavas cigarros nas palmas das
mãos e os que te viam choravam mas tu
não, nunca choraste por amores que se perdem os
naufrágios são belos sentimo-nos tão vivos entre as
ilhas, acreditas? E temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo tudo o que
seremos depois "pago-te um café se me contares
o teu amor"
.
José Tolentino Mendonça
Presbítero, poeta e teólogo português. É professor e vice-reitor na Universidade Católica Portuguesa.