domingo, 24 de abril de 2022

 

 


 

Andava à deriva, sem afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de Úrsula.

 

Gabril Garcia Marquez

 

Do livro "Cem anos de Solidão"

 

 

 

 

 


 

quinta-feira, 21 de abril de 2022

 

 


 

 

Toma-me

 

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca

Austera. Toma-me agora, antes

Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes

Da morte, amor, da minha morte, toma-me

Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute

Em cadência minha escura agonia.

 

Tempo do corpo este tempo, da fome

Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,

Um sol de diamante alimentando o ventre,

O leite da tua carne, a minha

Fugidia.

E sobre nós este tempo futuro urdindo

Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida

A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

 

Te descobres vivo sob um jogo novo.

Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,

Antes do muro, antes da terra, devo

Devo gritar a minha palavra, uma encantada

Ilharga

Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar

Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo

Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

 

 

Hilda Hilst, 

 

Poetisa, escritora e dramaturga brasileira (1930-2004).

 

quarta-feira, 20 de abril de 2022

 

 

 


 

 

Conheço esse sentimento

que é como a cerejeira

quando está carregada de frutos:

excessivo peso para os ramos da alma.

Conheço esse sentimento

que é o da orla da praia

lambida pela espuma da maré:

quando o mar se retira

as conchas são pequenas saudades

que doem no coração da areia.

Conheço esse sentimento

que é o dos cabelos do salgueiro

revoltos pelas mãos ágeis da tempestade:

na hora quieta do amanhecer

pendem-lhe tristemente os braços

vazios do amado corpo do vento.

Conheço esse sentimento

que passa nos teus olhos e nos meus

quando de mãos dadas

ouvimos o Requiem de Mozart

ou visitamos a nave de Alcobaça.

Pedro e Inês

a praia e a maré

o salgueiro e o vento

a verdade e o sonho

o amor e a morte

o pó das cerejeiras

tu.

e eu.

 

 

Rosa Lobato Faria, em 'Dispersos'

 

 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

 

 

 


 

 

Murmúrios do mar

 

"Paga-me um café e

conto-te a minha vida" o inverno avançava

nessa tarde em que te ouvi assaltado por dores

o céu quebrava-se aos disparos de uma criança

muito assustada que corria o vento batia-lhe no

rosto com violência a infância inteira disso me

lembro outra noite cortaste o sono da casa

com frio e medo apagavas cigarros nas palmas das

mãos e os que te viam choravam mas tu

não, nunca choraste por amores que se perdem os

naufrágios são belos sentimo-nos tão vivos entre as

ilhas, acreditas? E temos saudades desse mar

que derruba primeiro no nosso corpo tudo o que

seremos depois "pago-te um café se me contares

o teu amor"

 

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José Tolentino Mendonça

 

Presbítero, poeta e teólogo português. É professor e vice-reitor na Universidade Católica Portuguesa.