sexta-feira, 22 de outubro de 2021

 

 


 

 

 

Os Benefícios da Lua

 

A lua, que é a própria imagem do capricho, olhou pela janela enquanto dormias no teu berço, e disse consigo, mesma:

 

"Esta criança me agrada."

 

 E desceu maciamente a sua escada de nuvens, e deslizou sem ruído através das vidraças. Pousou sobre ti com um suave carinho de mãe, e depôs as suas cores em tuas faces. Então, as tuas pupilas tornaram-se verdes, e tuas faces extraordinariamente pálidas.

 

Foi contemplando essa visitante que os teus olhos se dilataram de modo tão estranho; e ela com tão viva ternura te apertou a garganta que ficaste, para sempre, com o desejo de chorar.

 

Entretanto, na expansão da sua alegria, a lua invadia todo o quarto, como uma atmosfera fosfórica, como um peixe luminoso; e toda esta luz viva pensava e dizia:

 

 "Tu sofrerás eternamente a influência do meu beijo"

 

 Serás bela à minha maneira. Amarás o que eu amo e o que me ama: a água, as nuvens, o silêncio e a noite; o mar imenso e verde; a água informe e multiforme; o lugar onde não estiveres; o amante que não conheceres; as flores monstruosas; os perfumes que fazem delirar; os gatos que desmaiam sobre os pianos e gemem que nem as mulheres, com uma doce voz enrouquecida!

 

E tu serás amada pelos meus amantes, cortejada pelos meus cortejadores. Serás a rainha dos homens de olhos verdes a quem também estreitei a garganta em minhas carícias noturnas; daqueles que amam o mar, o mar imenso, tumultuoso e verde, a água informe e multiforme, o lugar onde não estão, a mulher que não conhecem, as flores sinistras que sugerem incensórios de alguma religião ignota, os perfumes que turbam a vontade, e os animais selvagens e voluptuosos que são os emblemas da sua loucura.

 

E é por isso, maldita e querida criança mimada, que estou agora prosternado a teus pés, buscando em toda a tua pessoa o reflexo da terrível Divindade, da fatídica madrinha, da ama-de-leite envenenadora de todos os lunáticos.

 

 

Charles Baudelaire

terça-feira, 5 de outubro de 2021

 

 


 

Experimento junto a ti, um sentimento novo, de confiança e paz. Gostavas, tanto quanto, das longas caminhadas sem destino, através do campo, percorrendo caminhos que não levam a lugar algum. Aliás, não tinha a necessidade de chegar a parte alguma. Bastava-me o fato de estar tranquila ao teu lado. Tua natureza pensativa combinava com meu temperamento tímido. Nós nos calávamos juntos. Em seguida, tua voz grave, bonita e quase velada, tua voz retemperada pelo silêncio, interrogava-me suavemente sobre minha arte e sobre mim mesmo. Compreendi logo que sentias por mim uma espécie de ternura mesclada de compaixão. Eras bondosa. Conhecias o sofrimento por havê-lo curado ou minorado muitas vezes. Adivinhaste em mim um jovem doente, ou um jovem pobre. Eu era realmente tão pobre que sequer te amava. Em ti via somente a doçura. 

 

Os Benefícios da Lua

 

A lua, que é a própria imagem do capricho, olhou pela janela enquanto dormias no teu berço, e disse consigo, mesma:

 

"Esta criança me agrada."

 

 E desceu maciamente a sua escada de nuvens, e deslizou sem ruído através das vidraças. Pousou sobre ti com um suave carinho de mãe, e depôs as suas cores em tuas faces. Então, as tuas pupilas tornaram-se verdes, e tuas faces extraordinariamente pálidas.

 

Foi contemplando essa visitante que os teus olhos se dilataram de modo tão estranho; e ela com tão viva ternura te apertou a garganta que ficaste, para sempre, com o desejo de chorar.

 

Entretanto, na expansão da sua alegria, a lua invadia todo o quarto, como uma atmosfera fosfórica, como um peixe luminoso; e toda esta luz viva pensava e dizia:

 

 "Tu sofrerás eternamente a influência do meu beijo"

 

 Serás bela à minha maneira. Amarás o que eu amo e o que me ama: a água, as nuvens, o silêncio e a noite; o mar imenso e verde; a água informe e multiforme; o lugar onde não estiveres; o amante que não conheceres; as flores monstruosas; os perfumes que fazem delirar; os gatos que desmaiam sobre os pianos e gemem que nem as mulheres, com uma doce voz enrouquecida!

 

E tu serás amada pelos meus amantes, cortejada pelos meus cortejadores. Serás a rainha dos homens de olhos verdes a quem também estreitei a garganta em minhas carícias noturnas; daqueles que amam o mar, o mar imenso, tumultuoso e verde, a água informe e multiforme, o lugar onde não estão, a mulher que não conhecem, as flores sinistras que sugerem incensórios de alguma religião ignota, os perfumes que turbam a vontade, e os animais selvagens e voluptuosos que são os emblemas da sua loucura.

 

E é por isso, maldita e querida criança mimada, que estou agora prosternado a teus pés, buscando em toda a tua pessoa o reflexo da terrível Divindade, da fatídica madrinha, da ama-de-leite envenenadora de todos os lunáticos.

 

 

Charles Baudelaire

Marguerite Yourcenar

domingo, 3 de outubro de 2021

 

 


 

 

Disse-te um dia 

que havia de dar-te uma estrela

 tão real como os sonhos 

do rio Guadalquivir

e o perfume adolescente 

do teu corpo 

a ondular na aurora de Sevilha 

Não foste comigo a Barcelona 

ver as pesadas corolas 

e os mosaicos de La Pedrera 

mas espera-me no aeroporto 

de nunca antes

o rumor febril dos teu olhos

 onde aprendi 

que o tempo não existe 

Mas a vida pode ser 

também mágoa escura

 bem sabes 

Por isso te prendo

as mãos sobre as ancas 

para não fugirmos mais um do outro 

e bebo todo o sol e afinal o tempo 

nos teus lábios. 

 

 Urbano Tavares Rodrigues,

 

 in "Horas de Vidro"

sábado, 21 de agosto de 2021

 
 

Lembrar O'Neill


Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca,

Palavras de amor, de esperança,

De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas

Quando a noite perde o rosto,

Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas

Entre palavras sem cor,

Esperadas, inesperadas

Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama

Letra a letra revelado

No mármore distraído,

No papel abandonado)

Palavras que nos transportam

Aonde a noite é mais forte,

Ao silêncio dos amantes

Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill, poeta português (1924-1986).

 

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Glosa para José Gomes Ferreira

 

 

 


 


O mundo, dizias tu,

Não é só dos pássaros

E do vento, o mundo

É também nosso. Foi

Por isso, poeta,

Que encheste

Uma gaveta

De nuvens com a memória

Das palavras e acendeste

No chão

Dos dias

Comuns

Algumas estrelas

Com tua mão.

 

 

Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"

 

terça-feira, 16 de março de 2021


 

 

 

Bilhete para o Amigo Ausente

 

Lembrar teus carinhos induz

a ter existido um pomar

intangíveis laranjas de luz

laranjas que apetece roubar.

 

Teu luar de ontem na cintura

é ainda o vestido que trago

seda imaterial seda pura

de criança afogada no lago.

 

Os motores que entre nós aceleram

os vazios comboios do sonho

das mulheres que estão à espera

são o único luto que ponho.

 

Natália Correia, ativista social e escritora portuguesa (1922-1993).

 

in "O Vinho e a Lira"