sábado, 23 de maio de 2020





Ode do poeta Horácio



A neve espessa já pesa nos píncaros,
A mata mal suporta o fardo branco:
             Gelam os ribeirões,
             Paralisam-se os córregos.

Ó Taliarca do festim, apague o frio
Com as achas no fogão. Pródigo, verse
De uma ânfora sabina de duas ansas
            Um vinho de quatro anos!

O resto, amigo, entregue aos deuses. Mal
Morram os ventos guerreiros no mar,
            Não chacoalhem ciprestes,
            Nem cabeceiem freixos,

Não queiram saber nada do amanhã:
Credite à sua conta o dia de hoje.
Não se esquive, menino, dos namoros
           E nem das contradanças;

Bem longe os anos velhos, aproveite,
Antes da idade trôpega e grisalha,
           Dos risos abafados
           Nos cantos escondidos,

Quando o dia se vai, da namorada,
E roube dela anéis e braceletes
De amor, depois de uns queixumes, após
          Alguma resistência.



Tradução: Décio Pignatari

sábado, 2 de maio de 2020







(Sem Título)



És como doce juriti da mata,
Ligeira, esquiva, tímida e medrosa:
Foges de mim tremente e suspirosa,
Como quem de um perigo se recata.
Mas não sei, afinal, criança ingrata,
Porque foges: não sei porque amorosas
Tua alma casta, angélica e bondosa,
Com tão doce esquivança me maltrata.
Abre as asas à luz serenamente
E vem fugindo aos gelos do deserto
Buscar o sol do meu amor ardente.
Dirige para mim teu voto incerto,
Pois tens meu coração, pomba inocente,
Como um tépido ninho sempre aberto.



Adelino Fontoura, 

poeta, jornalista e ator brasileiro (1859-1884).




(Publicado originalmente em O Álbum, Rio de Janeiro, n. 40, de setembro de 1983, com o título de "O Ninho".

terça-feira, 28 de abril de 2020



28 de Abril, dia do sorriso

Jesus Helguera painter










28 de Abril dia do sorriso



O Teu Riso



Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.
Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.
Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.
Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.
Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.




Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda

segunda-feira, 20 de abril de 2020





Conheço esse Sentimento


Conheço esse sentimento
que é como a cerejeira
quando está carregada de frutos:
excessivo peso para os ramos da alma.

Conheço esse sentimento
que é o da orla da praia
lambida pela espuma da maré:
quando o mar se retira
as conchas são pequenas saudades
que doem no coração da areia.

Conheço esse sentimento
que é o dos cabelos do salgueiro
revoltos pelas mãos ágeis da tempestade:
na hora quieta do amanhecer
pendem-lhe tristemente os braços
vazios do amado corpo do vento.

Conheço esse sentimento
que passa nos teus olhos e nos meus
quando de mãos dadas
ouvimos o Requiem de Mozart
ou visitamos a nave de Alcobaça.

Pedro e Inês
a praia e a maré
o salgueiro e o vento
a verdade e o sonho
o amor e a morte
o pó das cerejeiras
tu.
e eu.


in 'Dispersos'



Rosa Lobato de Faria, escritora portuguesa (1932- 2010).