terça-feira, 14 de abril de 2020





Poema do silêncio




Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...
O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.
Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!
Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...
Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.




José Régio

quarta-feira, 18 de março de 2020


Pedro Barroso: Calou-se para sempre o artesão das canções
O músico que, mais do que letras,  escrevia poemas






Cmpanheira

     
 
Deixei pousar minha boca em tua fronte
toquei-te a pele como se fosses água
escorreguei em teu ventre como o vento
e atravessei-te em mim como se fosse farpa
    
Deixei crescer esta vontade devagar
deixei crescer no peito um infinito
ai eu morri de morte lenta no desejo
em cada beijo abafei um grito
 
Quando desfolho o livro velho da memória
sinto que o tempo passado à tua beira
é um espaço bom que há na minha história
e foi bonito ter dito companheira
         
Inventei mil paisagens no teu peito
e rebentei de loucura e fantasia
quando me olhavas devagar com esse geito
eu descobri tanta coisa que não via
   

Havia em ti uma forma grande de incerteza
que conseguias converter em alegria
havia em ti um mar salgado de beleza
que me faz sentir saudades em cada dia
   
Quando desfolho o livro velho da memória
sinto que o tempo passado à tua beira
é um espaço bom que há na minha história
e foi bonito ter dito companheira



Pedro Barroso


quinta-feira, 5 de março de 2020






Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.

1912

Anna Akhmátova, poetisa russa (1889-1966)




segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020







Praia do Paraíso



Era a primeira
vez que nus os nossos corpos
Apesar da penumbra á vontade se olhavam
Surpresos de saber que tinham tantos olhos
Que podiam ser luz de tantos candelabros
Era a primeira vez cerrados os estores
Só o rumor do mar permanecera em casa
E sabias a sal, e cheiravas a limos
Que tivesses ouvido o canto das cigarras
Havia mais que céu no céu do teu sorriso
Madrugada de tudo em tudo que sonhavas
Em teus braços tocar era tocar os ramos
Que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo
É preciso afinal chegar aos cinquenta anos
Para se ver que aos vinte é que se teve tudo.




David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927- 1996)

domingo, 23 de fevereiro de 2020








Deito-me na cama vazia
E entrego-me ao silêncio
Não há ecos
Não há sombras
Não há braços, nem pernas
À espera de mim

O meu corpo molda-se aos lençóis
E enrola-se no sonho
Na maresia do desejo de te ter
De te encontrar
Aqui na penumbra do meu quarto
No sossego das minhas vozes
Na tempestade do meu ser
Sedento de ti

Abro os sentidos em mim
Devagarinho, como quem abre
Uma porta antiga, selada de tempo
E deixo-te entrar
Sorrateiro e impotente
Na tua dimensão emprestada
À minha fantasia

Sinto o teu peso sobre mim
A deslizar num movimento febril
E o teu rosto indistinto de sépia
Numa moldura de outro século
Liberta-me em espasmos doloridos
Resgata-me da minha solidão
Para me levar contigo

O amor franqueia todas as cancelas
A eternidade é o momento


Ana Wiesenberger         
 

“in Um não querer mais que bem querer”
Portugal 1962




Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.com

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020







Pilotagem

E os meus olhos rasgarão a noite;

E a chuva que vier ferir-me nas vidraças
Compreenderá, então, a sua inutilidade;

E todos os sinos que alimentavam insónias
hão-de repetir as horas mortas
só para os ouvidos da torre;

E os outros ruídos abafar-se-ão no manto negro da noite;

E a mão alva que me apontava os nortes
e ficou debruçada no postigo
amortalhada pela neve
reviverá de novo;

E todas as luzes que tresnoitaram os homens
apagar-se-ão;

E o silêncio virá cheio de promessas
que não se cansaram na viagem;

E os caminhos se abrirão
para os homens que seguirem de mãos dadas;

E assim terão começo
os sonhados dias dos meus dias!




Fernando Namora, escritor português (1919-1989).