segunda-feira, 14 de outubro de 2019







Agora ar é ar e coisa é coisa: traço
nenhum da terra celestial seduz
nossos olhos sem ênfase onde luz
a verdade magnífica do espaço.

montanhas são montanhas; céus são céus -
e uma tal liberdade nos aquece
que é como se o universo uno, sem véus,
total, de nós(somente nós) viesse

sim; como se, despertas do torpor
do verão, nossas almas mergulhassem
no branco sono onde se irá depor
toda a curiosidade deste mundo
(com júbilo de amor) imortal e a coragem
de receber do tempo o sonho mais profundo



E. E. Cummings, poeta estadunidense (1894- 1962).






Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 11 de outubro de 2019












À Noite


À noite,
Dou repouso
A um sol imenso dos dias
De labor,
Que trabalha o meu espaço
E o meu tempo.


À noite, junto a ti,
Sinto outro sol imenso,
Feito nos teus lábios vermelhos
A me aquecerem com beijos de amor.



Cortesia de Paulo da Costa Carvalho Junior

Recife-PE, 11 de Julho de 2018





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 27 de setembro de 2019







Eis que será preciso retornar
e numa outra alameda renascer
e com um outro ramo o sol tocar
e numa outra luz se acender
e numa outra noite se encantar
e num outro infinito se perder.



Lenilde Freitas






Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 4 de setembro de 2019






Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como não há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica.

Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.

Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.

Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
o direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa
evidência me matar agora.

E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?

Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insónia, com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.



José Luís Peixoto, escritor, dramaturgo e poeta português. 1974

in Gaveta de Papéis



Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 1 de setembro de 2019




Minha Gata de Janeiro



Meu amor querido

Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina meu verso de Holderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre minas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de aladino minha mulher

António Lobo Antunes, in 'Cartas da Guerra (17 Abr 1971')




Fonte do poema: http://www.citador.pt/


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sexta-feira, 30 de agosto de 2019






El traje rosa

Adoro la túnica rosa
en que va tu hermosura envuelta;
es el tibor de tu garganta;
es de tu cuerpo ánfora esbelta.
Frágil como una rosa thé,
leve como un ala de abeja,
toda te ciñe y te circunda
con rauda caricia bermeja.
A la seda tu piel trasmite
sus estremecimientos cálidos:
a tu piel la seda devuelve
reflejo de carmines pálidos.
-¿ Quién urdió la mágica tela
con hilos de tu carne misma,
en un misterio donde suman
luz, seda y piel un móvil prisma?
-¿Son los iris de la alborada;
o los nácares de Afrodita;
o los rubíes de tu seno
lo que en tu clámide se agita?
-¿Quizá las hebras se tiñeron
en tus corales de pudor,
cuando desnuda contemplabas
de tus líneas el esplendor?
Tú, despojada de esos velos
-soñada encarnación del arte-
ser podrías ante Canova
cual otra Venus Bonaparte.
No sé si eres urna de ónice
donde ávidos goces van presos,
o si lo que tu cuerpo ciñe
es una túnica de besos.


Théophile Gautier, poeta francês (1811-1872).


Traducción de Carlos López Narváez



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sexta-feira, 23 de agosto de 2019




Lavar a Desonra 

Mamãe! Um estertor, lágrimas, negrume.
O sangue flui, o corpo apunhalada treme,
O cabelo ondulado se suja de barro.
Mamãe! Só se ouve o carrasco.
Amanhã virá a aurora,
As rosas despertarão
À chamada dos vinte anos
E a esperança fascinada.
As flores dos campos respondem:
Deixou-se... lavar a desonra.
O brutal carrasco retorna e diz a todos:
A desonra? – limpa seu punhal –
Despedaçamos a desonra.
De novo temos virtude, boa fama, dignos.
Taberneiro! Onde estão o vinho e os copos?
Chama essa indolente beleza de alento perfumado
Por cujos olhos dariam o Corão e o destino.
Enche teu copo, açougueiro,
A morte levou a desonra.

Ao amanhecer, as meninas perguntarão por ela:
Onde está? A besta responderá:
matamo-la. Levava na frente
o estigma da desonra
e lavamo-la.
Os vizinhos contarão sua triste história
E até as palmeiras difundirão pelo bairro,
E as portas de madeira, que não a esquecerão.
As pedras sussurrarão:
“Lavar a desonra”
“Lavar a desonra”

Vizinhas do bairro, meninas do povoado
Amassaremos o pão com nossas lágrimas,
Cortaremos nossas tranças
Descoloriremos as mãos
Para que suas roupas permaneçam brancas e puras.
Não sorriremos nem nos alegraremos nem voltaremos
Porque o punhal, na mão de nosso pai
Ou de nosso irmão, nos vigia
E amanhã, quem sabe em qual deserto

Nos enterrará para lavar a desonra?



Nazik Al-Malaika, poetisa iraquiana (1922-2007).



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