quarta-feira, 21 de agosto de 2019





Um Adeus Português



Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill, poeta português (1986-1924).

in 'Poesia Completas'



Fonte do poema:  http://www.citador.pt/



Foto: By Karolina Piórek

segunda-feira, 19 de agosto de 2019






Humildade



Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.


Cora Coralina, poetisa e contista brasileira (1889 - 1985).



Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 12 de agosto de 2019





Contrição




Eu não te mereci. Eras bela e eras pura.
Havia na tua alma um secreto esplendor,
Misto de suavidade, emoção e ternura.
E essa luz era o amor!

Um dia, meigamente, amada peregrina,
Vieste pousar, sorrindo, o teu olhar no meu.
E havia no teu ser uma graça divina,
Um encanto imortal, que logo me prendeu.

Eu pude acreditar, quando chegaste, linda,
Para mim descerrando a mais clara manhã,
Que em tua luz feliz, que em tua luz infinda
Se me abria Canaã.

Perdoa, se eu, que sou imperfeito, um momento
Ousei volver o olhar à tua perfeição,
Implorando um sorriso ao teu recolhimento,
Implorando um carinho à tua solidão.


                                
Poesias 1949


Múcio Leão, poeta e jornalista brasileiro (1898-1969).




Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 24 de julho de 2019






Indiferença


Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado
passo. E eu, baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto,
pudéssemos varrer nosso passado.

Passo esquecido de te olhar, coitado!
Vais, coitada, esquecida de que existo.
Como se nunca me tivesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado

Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,
se quando passo, teu olhar me alcança
se meus olhos te alcançam quando vais.

Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos.
Volta-nos sempre a pálida lembrança.
Daqueles tempos que não voltam mais!



Guilherme de Almeida, crítico de cinema, poeta e tradutor brasileiro (1890- 1969).



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


segunda-feira, 22 de julho de 2019






O beijo à noite



Com as mãos segurei a tua cabeça
como quem segura uma ânfora, e servi-me
do néctar do amor.
Quem ousaria pensar que tão pequena ânfora
guardasse tanto licor?
Já a aurora despontava no céu
quando as nossas bocas se separaram.



Anónimo
(Arábia antiga)

Séc. XII?



Imagem:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 18 de julho de 2019





Sou mais alto do que a palmeira,
porque os meus olhos chegam às palmas,
chegam às aves voando por cima das palmas.
Sou mais longo do que um rio,
porque ouço o longínquo rumor do mar
ou fechando os olhos vejo o fulgor das praias.
Sou mais poderoso que uma leoa,
porque a minha dor escrita chega mais longe que o seu rugido,
chega às mãos da minha amada, a dor escrita,
chega mais longe que o rugido,
a dor escrita chega às mãos da minha amada.



Povo Misquito
América Central Séc. XVII-XVIII
Trad. Herberto Helder
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim




Fonte do Poema: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.com/


Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 28 de junho de 2019






(Para TI)


A ti revelo os meus segredos
As minhas sombras, pesadelos
A ti revelo os meus medos
Sequelas do meu pensamento
A ti revelo os meus sonhos
Esperanças perdidas no momento
A ti eu mostro o meu tesouro
Minha arte, meus poemas, o meu ouro
A ti revelo o meu corpo
Aberto, descoberto monumento
A ti e só a ti o meu desejo
Que não é mais nem menos
Que o teu beijo.


Bruno Sousa – Portugal




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/