segunda-feira, 22 de julho de 2019






O beijo à noite



Com as mãos segurei a tua cabeça
como quem segura uma ânfora, e servi-me
do néctar do amor.
Quem ousaria pensar que tão pequena ânfora
guardasse tanto licor?
Já a aurora despontava no céu
quando as nossas bocas se separaram.



Anónimo
(Arábia antiga)

Séc. XII?



Imagem:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 18 de julho de 2019





Sou mais alto do que a palmeira,
porque os meus olhos chegam às palmas,
chegam às aves voando por cima das palmas.
Sou mais longo do que um rio,
porque ouço o longínquo rumor do mar
ou fechando os olhos vejo o fulgor das praias.
Sou mais poderoso que uma leoa,
porque a minha dor escrita chega mais longe que o seu rugido,
chega às mãos da minha amada, a dor escrita,
chega mais longe que o rugido,
a dor escrita chega às mãos da minha amada.



Povo Misquito
América Central Séc. XVII-XVIII
Trad. Herberto Helder
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim




Fonte do Poema: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.com/


Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 28 de junho de 2019






(Para TI)


A ti revelo os meus segredos
As minhas sombras, pesadelos
A ti revelo os meus medos
Sequelas do meu pensamento
A ti revelo os meus sonhos
Esperanças perdidas no momento
A ti eu mostro o meu tesouro
Minha arte, meus poemas, o meu ouro
A ti revelo o meu corpo
Aberto, descoberto monumento
A ti e só a ti o meu desejo
Que não é mais nem menos
Que o teu beijo.


Bruno Sousa – Portugal




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 12 de junho de 2019





Noite: sonho de esparsas
janelas iluminadas.
Ouvir a clara voz
do mar. De um livro amado
ver as palavras
sumirem ... – Oh estrelas fugidias
o amor da vida!


Sandro Penna, poeta italiano (1906- 1977).

tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti.





Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 9 de junho de 2019






Viver Sempre também Cansa


O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.


José Gomes Ferreira, in 'Viver Sempre também Cansa'



Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 6 de junho de 2019






Os Brilhantes



Não ha mulher mais pallida e mais fria,
E o seu olhar azul vago e sereno
Faz como o effeito d'um luar ameno
Na sua tez que é morbida e macia.

Como Levana ... esta mulher sombria
Traz a Morte cruel ao seu aceno,
O Suicidio e a Dôr!... Lembra do Rheno
Um conto, á luz crepuscular do dia.

Por isso eu nunca invejo os seus amantes!
- E em quanto hontem, gabavam seus brilhantes,
No theatro, com vistas fascinadas...

Tortura das visões... incomprehensiveis!
Em vez d'elles, cri ver brilhar - horriveis
E verdadeiras lagrimas geladas!



António Gomes Leal, poeta português (1848- 1921)

in 'Claridades do Sul'


Fonte do poema: http://www.citador.pt/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 5 de junho de 2019





Hoje sinto no coração
Um vago tremor de estrelas,
Mas minha senda se perde
Na alma de névoa.


A luz me quebra as asas
E a dor de minha tristeza
Vai molhando as recordações
Na fonte da ideia.


Todas as rosas são brancas,
Tão brancas como minha pena,
E não são as rosas brancas
Porque nevou sobre elas.


Antes tiveram o íris.
Também sobre a alma neva.


A neve da alma tem
Copos de beijos e cenas
Que se fundiram na sombra
Ou na luz de quem as pensa.


A neve cai das rosas,
Mas a da alma fica,
E a garra dos anos
Faz um sudário com elas.


Desfazer-se-á a neve
Quando a morte nos levar?
Ou depois haverá outra neve
E outras rosas mais perfeitas?


Haverá paz entre nós


Como Cristo nos ensina?
Ou nunca será possível
A solução do problema?
E se o amor nos engana?
Quem a vida nos alenta
Se o crepúsculo nos funde
Na verdadeira ciência
Do Bem que quiçá não exista,
E do mal que palpita perto?


Se a esperança se apaga
E a Babel começa,
Que tocha iluminará
Os caminhos da Terra?


Se o azul é um sonho,
Que será da inocência?
Que será do coração
Se o Amor não tem flechas ?


Se a morte é a morte,
Que será dos poetas
E das coisas adormecidas
Que já ninguém delas se recorda?


Oh! sol das esperanças!
Água clara! Lua nova!
Coração dos meninos!
Almas rudes das pedras!


Hoje sinto no coração
Um vago tremor de estrelas
E todas as coisas são
Tão brancas como minha pena.


Federico García Lorca, poeta e dramaturgo espanhol (1898-1936).




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/