Meu destino é um rio do deserto
A murmurar-me aos pés;
Veia nascida em uma noite amarga,
As bordas são de areia, a onda é larga
E loucas as marés.
Tem as águas azuis, — mas são profundas
Naquele murmurar,
Correm aqui como a falar segredos
Sobre leito de lodo e de rochedos
A um ignoto mar!
Pálidas flores que uma vaga incerta
Ali suspensas traz
Vicejam aos borrifos, do meu pranto.
Oh! essas flores que te prendem tanto
Deixa-as, Ofélia, em paz!
Não te curves à borda dessas águas
De superfície anil,
Ébria de amores, — do teu sonho casto
Não acharás ali o mundo vasto
Nem o rosado abril.
Deixa essas flores; uma onda as leva
Onde? Nem mesmo eu sei!
Deixa-as correr, — festões de meu destino;
Passa cantando, meu amor, teu hino,
A que eu te abençoarei.
Atado à pedra que me leva, um dia
A queda suspendi.
Vi-te à margem das águas debruçada
A paixão dos meus sonhos, — tão sonhada
Vi-a, encontrei-a em ti.
Maga estrela pendente do horizonte
E curva sobre o mar
Vieste à noite conversar comigo;
Mas a aurora chegou — ao leito antigo
Vai, é mister voltar.
Deixa-me, não te curves sobre as flores
Deste leito de azul;
Molhastes os teus vestidos, foge embora!
Não te despenhes, — vem o mar agora
Encapelado ao sul.
Enxuga agora ao sol as tuas roupas
E deixa-me seguir;
Não sei qual a torrente que me espera;
Vai, não prendas a tua primavera,
Onde é fundo o porvir!
Machado de Assis
(In Correio Mercantil, 21 out. 1859)
In Poesia Completa - Dispersas, 1854-1939
Fonte: http://www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=17520
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/