terça-feira, 31 de outubro de 2017





Poema de Sete Faces
 

Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse:
Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos não perguntam nada.
O homem atrás do bigode é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
 


Carlos Drummond de Andrade


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segunda-feira, 30 de outubro de 2017




A Alquimia do Amor

Chegas a nós
Vindo de um outro mundo
Além das estrelas e
De um espaço sem fim.
Transcedental, puro,
De uma beleza inimaginável,
Trazendo contigo
A essência do amor.
Tu  transformas  tudo o que tocas
Aflições banais,
Problemas e tristezas
Dissolvem-se na sua presença,
Trazendo alegria
Aos comandantes e aos comandados,
Aos plebeus e aos reis.
Enfeitiças-nos
Com tua graça.
Qualquer mal
Transforma-se em
Bem.
Tu acendes  a chama do amor
Na terra e no céu,
No coração e na alma
De cada ser humano.
Com seu amor
O existir e o não-existir se unem.
Os opostos de fundem.
E tudo o que é profano
Torna-se sagrado outra vez.


Jalal ud-Din Rumi



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domingo, 29 de outubro de 2017





ESCULTURA

Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na
alegria.
Te amava por todos os teus complexos de
derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos
 atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem
pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força
e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...

Adalgisa Nery

De A Mulher Ausente (1940)



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sábado, 28 de outubro de 2017




Amor

Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu’alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!

Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d’esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,
Minha’alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!


Álvares de Azevedo


  

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sexta-feira, 27 de outubro de 2017




Achava que não podia ser magoada;
achava que com certeza era
imune ao sofrimento
imune às dores do espírito
ou à agonia.
Meu mundo tinha o calor do sol de abril
Meus pensamentos, salpicados de verde e ouro.
Minha alma em êxtase, ainda assim
conheceu a dor suave e aguda que só o prazer
pode conter.
Minha alma planava sobre as gaivotas
que, ofegantes, tão alto se lançando,
lá no topo pareciam roçar suas asas
farfalhantes no teto azul
do céu.
 (Como é frágil o coração humano —
um latejar, um frêmito —
um frágil, luzente instrumento
de cristal que chora
ou canta.)
Então de súbito meu mundo escureceu
E as trevas encobriram minha alegria.
Restou uma ausência triste e doída
Onde mãos sem cuidado tocaram
e destruíram
minha teia prateada de felicidade.
As mãos estacaram, atônitas.
Mãos que me amavam, choraram ao ver
os destroços do meu firma-
mento.
 (Como é frágil o coração humano
espelhado poço de pensamentos.
Tão profundo e trêmulo instrumento
de vidro, que canta
ou chora.)

Sylvia Plath

 (Tradução de Mônica Magnani Monte)



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quinta-feira, 26 de outubro de 2017




Corpo


Corpo corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo

Al Berto



Al Berto, O Medo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998


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quarta-feira, 25 de outubro de 2017




DIANTE DO MAR


Oh, mar, enorme mar, coração feroz
de ritmo desigual, coração mau,
eu sou mais tenra que esse pobre pau
que, prisioneiro, apodrece nas tuas vagas.

Oh, mar, dá-me a tua cólera tremenda,
eu passei a vida a perdoar,
porque entendia, mar, eu me fui dando:
“Piedade, piedade para o que mais ofenda”.

Vulgaridade, vulgaridade que me acossa.
Ah, compraram-me a cidade e o homem.
Faz-me ter a tua cólera sem nome:
já me cansa esta missão de rosa.

Vês o vulgar? Esse vulgar faz-me pena,
falta-me o ar e onde falta fico.
Quem me dera não compreender, mas não posso:
é a vulgaridade que me envenena.

Empobreci porque entender aflige,
empobreci porque entender sufoca,
abençoada seja a força da rocha!
Eu tenho o coração como a espuma.

Mar, eu sonhava ser como tu és,
além nas tardes em que a minha vida
sob as horas cálidas se abria…
Ah, eu sonhava ser como tu és.

Olha para mim, aqui, pequena, miserável,
com toda a dor que me vence, com o sonho todos;
mar, dá-me, dá-me o inefável empenho
de tornar-me soberba, inacessível.

Dá-me o teu sal, o teu iodo, a tua ferocidade,
Ar do mar!… Oh, tempestade! Oh, enfado!
Pobre de mim, sou um recife
E morro, mar, sucumbo na minha pobreza.

E a minha alma é como o mar, é isso,
ah, a cidade apodrece-a engana-a;
pequena vida que dor provoca,
quem me dera libertar-me do seu peso!

Que voe o meu empenho, que voe a minha esperança…
A minha vida deve ter sido horrível,
deve ter sido uma artéria incontível
e é apenas cicatriz que sempre dói.

Alfonsina Storni



Tradução de José Agostinho Baptista

Fonte: artefatocultural.com.br


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