quarta-feira, 27 de setembro de 2017




Entardecer

A luz passa
de crista em crista
de flor em flor —
as hepáticas, abertas
sob a luz
vão sumindo —
as pétalas se introvertem,
as pontas azuis se curvam
ao mais azul do seu âmago
e as flores se perdem.
Ainda brancos os cornisos em botão,
mas sombras se lançam
das raízes dos cornisos —
rasteja o negror de raiz em raiz,
cada folha
corta outra folha no capim,
sombra segue sombra,
e tanto folha quanto
sombra-de-folha se perdem.

Hilda Doolittle

tradução de Adriano Scandolara
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terça-feira, 26 de setembro de 2017




Conheço esse sentimento
que é como a cerejeira
quando está carregada de frutos:
excessivo peso para os ramos da alma.
Conheço esse sentimento
que é o da orla da praia
lambida pela espuma da maré:
quando o mar se retira
as conchas são pequenas saudades
que doem no coração da areia.
Conheço esse sentimento
que é o dos cabelos do salgueiro
revoltos pelas mãos ágeis da tempestade:
na hora quieta do amanhecer
pendem-lhe tristemente os braços
vazios do amado corpo do vento.
Conheço esse sentimento
que passa nos teus olhos e nos meus
quando de mãos dadas
ouvimos o Requiem de Mozart
ou visitamos a nave de Alcobaça.
Pedro e Inês
a praia e a maré
o salgueiro e o vento
a verdade e o sonho
o amor e a morte
o pó das cerejeiras
tu.
e eu.

Rosa Lobato Faria, em 'Dispersos'




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segunda-feira, 25 de setembro de 2017




Quem?

Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...

És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço...

És aquele que vive e que morreu...
És aquele que é quase um outro eu...
És aquele que nem sequer conheço...

Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"



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domingo, 24 de setembro de 2017





Era de noite: — dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração,
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração!

Ah! que véu de palidez
Da langue face na tez!
Como teus seios revoltos
Te palpitavam sonhando!
Como eu cismava beijando
Teus negros cabelos soltos!

Sonhavas? — eu não dormia;
A minh’alma se embebia
Em tua alma pensativa!
E tremias, bela amante,
A meus beijos, semelhante
Às folhas da sensitivas!

E que noite! que luar!
E que ardentias no mar!
E que perfumes no vento!
Que vida que se bebia
Na noite que parecia
Suspirar de sentimento!

Minha rola, ó minha flor,
Ó madressilva de amor,
Como eras saudosa então!
Como pálida sorrias
E no meu peito dormias
Aos ais do meu coração!

E que noite! que luar!
Como a brisa a soluçar
Se desmaiava de amor!
Como toda evaporava
Perfumes que respirava
Nas laranjeiras em flor!

Suspiravas? que suspiro!
Ai que ainda me deliro
Entrevendo a imagem tua
Ao fresco da viração,
Aos ais do meu coração,
Embalada na falua!

Como virgem que desmaia,
Dormia a onda na praia!
Tua alma de sonhos cheia
Era tão pura, dormente,
Como a vaga transparente
Sobre seu leito de areia!

Era de noite — dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração;
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração.

Manuel Antônio Álvares de Azevedo


Painting by Serge Marshennikov


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sábado, 23 de setembro de 2017




Tenho Fome da Tua Boca


Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.

Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas

e faminto venho e vou farejando o crepúsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratue.

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"


 Art By Ron DiScenza


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sexta-feira, 22 de setembro de 2017




Aquele Claro Sol

Aquele claro sol, que me mostrava
o caminho do céu mais chão, mais certo,
e com seu novo raio, ao longe, e ao perto,
toda a sombra mortal m'afugentava,

deixou a prisão triste, em que cá estava.
Eu fiquei cego, e só, c'o passo incerto,
perdido peregrino no deserto
a que faltou a guia que o levava.

Assi c'o esprito triste, o juízo escuro,
suas santas pisadas vou buscando
por vales, e por campos, e por montes.

Em toda parte a vejo, e a figuro.
Ela me toma a mão e vai guiando,
e meus olhos a seguem, feitos fontes.

António Ferreira, in 'Poemas Lusitanos'




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quinta-feira, 21 de setembro de 2017




O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera , amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda