terça-feira, 4 de julho de 2017




II
Ó se o recordo, e bem! numa invernia brava,
O ríspido e glacial Dezembro decorria
E, da lareira ao chão, cada brasa lançava
O supremo fulgor da sua lenta agonia.
E eu a esperar, em vão, a aurora que tardava
Queria, em vão, achar nessa velha teoria
Contida no volume antigo que estudava,
Um consolo sequer à dor que me pungia.
Em vão! consolo, em vão! à minha dor profunda
Em vão! repouso, em vão! à alma que se me inunda
Desta imortal saudade aos prantos imortais.
Porque jamais se esquece, alma consoladora
Como essa que nos céus é chamada Eleonora,
Nome que nunca mais ouvirei, nunca mais!

Emílio de Meneses

Fot: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 3 de julho de 2017




O solstício de Dezembro

O mundo jamais é parecido consigo próprio
tão inesperada é a noite,
mesmo quando em sua rotação se repete,
efectiva e extingue,
no corpo e cinzas de uma criança,

não vos espanteis por isso senhores,
dezembro é um solstício que nos sobrevive
e nada mais se anseia
do que abraçar todo o tempo do tempo
para seguir uma estrela viva,
um frágil e divino coração de criança
em homens aturdidos pelo afago da entrega,
guardai pois um Natal,
nada mais se reterá no cheiro do orvalho
que aconchegamos dentro de nós,

o seu leito evidencia a inquietude do fogo
e a poesia parece a puerícia do verbo:
ainda que nos céus
em seu nome o nome do mundo se cante,
o que é sagrado e profano,
o que é rei e pastor
e se planta e adolesce
e se percorre até à extrema boca do advento,
mundo de júbilos e prantos
que como o sol nas trevas se revive.


Uma criança nos aquieta o corpo,
a noite atravessa o mundo,
obscuros e formais viajantes,
se as quimeras se ofuscam sob os céus
a culpa é dos corações e não da luz das estrelas.


             João Rasteiro



Fonte: http://nocentrodoarco.blogspot.pt
Foto: By Irene Sekulic

domingo, 2 de julho de 2017

Homenagem a Sophia  De Mello Breyner  Andresen 
poetisa e escritora portuguesa

1919/2004





A ESTRELA
Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava

Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada

A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava

Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava

E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava

E assim eles disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada

Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava

E a estrela do céu parou em cima
de uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água

Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado

Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Livro sexto, 1962
A Estrela


Fonte: http://www.avozdapoesia.com.br/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 1 de julho de 2017




Leitura

Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.

Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia
de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.


Carlos de Oliveira, in 'Pastoral'



Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


sexta-feira, 30 de junho de 2017




Acho inúteis as palavras
Quando o silêncio é maior
Inúteis são os meus gestos
P'ra te falarem de amor

Acho inúteis os sorrisos
Quando a noite nos procura
Inúteis são minhas penas
P'ra te falar de ternura

Acho inúteis nossas bocas
Quando voltar o pecado
Inúteis são os meus olhos
P'ra te falar do passado

Acho inúteis nossos corpos
Quando o desejo é certeza
Inúteis são minhas mãos
Nessa hora de pureza.


António Sousa Freitas


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 29 de junho de 2017




Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições
HUMANIDADE.

  
Alda do Espírito Santo (Poetisa de S. Tomé, 1926- )


Foto: https://pt.pinterest.com/cinafraga/

quarta-feira, 28 de junho de 2017



Golpes,
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.



Sylvia Plath (Poetisa Norte-Americana, 1932-1963)


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/