terça-feira, 13 de junho de 2017





Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa” 



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


segunda-feira, 12 de junho de 2017





Como é belo seguir-te
ó jovem que ondeias
tranqüilo pelas ruas noturnas.
Se paras numa esquina, longe
eu pararei, longe
de tua paz, -- ó ardente
solidão a minha.

Sandro Penna



Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti.
Fonte: http://revistamododeusar.blogspot.pt

Imagem: Vince chi fugge

sábado, 10 de junho de 2017




O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;
O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.
O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.
Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.



Luís de Camões

sexta-feira, 9 de junho de 2017





Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação…

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.


José Gomes Ferreira



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 8 de junho de 2017




As cortinas estavam meio corridas, o chão varrido
       Semeado de juncos, rosmaninho e primaveras
       espessos deitados sobre a cama em que me deito.
Pelas gelosias trepavam as sombras das heras.

Inclinou-se sobre mim, pensando que eu dormia
       E não o ouviria, mas ouvi-o dizer:
       " Pobre criança, pobre criança! " e ao afastar-se
Caíu um silêncio profundo, e percebi que chorava.

Não tocou na mortallha, não levantou a dobra
       Que me escondia a cara, nem pegou na minha mão,
           Ou me ajeitou as almofadas macias para a cabeça
              Não me amou viva, mas uma vez morta
                Teve piedade de mim. E é muito doce
Sabê-lo ainda caloroso embora estando eu fria.


Christina Georgina Rossetti

(England 1830-1894)



Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.pt/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 7 de junho de 2017




A última consoante
a Jacques Thiers

Como se tivesse voltado à infância onde tudo coincide
para escapar à verdade. Mais estreita a verdade
do que a estrada de ravina. A tua voz acaricia-me
as vogais no cimo, sobre Bastia, a montanha e o mar
são a mesma coisa, as casas salgadas, algas à porta
e um cão rebolando-se na areia. O perfume da erva,
dos aromas que abres com a tua chave. Talvez usasses
calções
e tivesses os bolsos cheios de nada quando a tua voz
só sabia dizer sim. Como nesse dia, acreditas que
“Pacà, pacarà ella!”
e tiras do bolso o gesto majestático de uma miúda
de dez anos. Foi aqui que o meu corpo se desembaraçou
da última consoante. Mais tarde, quando entrei no
oratório
de Santa Croce, um cristo olhou-me sereno e sem
sofrimento
e compreendi que não precisou de morrer para nos

salvar.

Rosa Alice Branco 




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 5 de junho de 2017




A rosa

não buscava a aurora:
quase eterna no ramo
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava ciência nem sombra:
confim de carne e sonho,
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava a rosa:
imóvel pelo céu
buscava outra coisa.



Federico García Lorca


Foto: Pesquisa Google