quinta-feira, 21 de novembro de 2019







Arde agora o fogo do Outono, devagar,  através dos bosques,
E, dia após dia, caem e fundem-se as folhas mortas
E, noite após noite, o monitório vento
Geme na fechadura, contando como passou
Pelos campos desertos ou pelos montes solitários
Ou por terríveis e gigantescas ondas. Sente-se agora
O poder  da melancolia, mais delicada nas suas formas
Que qualquer encanto oferecido pelo complacente  Verão."



William Allingham, poeta britânico (n. 1824-1889).



  No livro - A Alegria de Viver com a Natureza de - Edith Holden



Foto: Pesquisa Google

sexta-feira, 8 de novembro de 2019





Os Seios



Como serpente arquejante
Se enrosca em férvida areia,
Meu ávido olhar se enleia
No teu colo deslumbrante.

Quando o descobres, no ar
Morno calor se dissolve
Do aroma, em que ele se envolve,
Como em neblina o luar.

Se ao corpo te enrosco os braços,
A terra e os céus estremecem,
E os mundos febris parecem
Derreter-se nos espaços!

E tu nem sequer presumes
Que então, querida, até creio,
Sorver, desfeito em perfumes,
Todo o sangue do teu seio.

Depois que aspiro, ansiado,
Do teu níveo colo o incenso,
Minh'alma semelha um lenço
De viva essência molhado.

Deixa que a louca se deite
Nesse torpor, que extasia,
E que o vinho do deleite
Me espume na fantasia;

Pois não há ópio ou haschis
Que me abrilhante as idéias
Como as fragrâncias sutis
Que fervem nas tuas veias!



Teófilo Dias, político e poeta brasileiro (1854-1889).


Foto: pesquisa net

sexta-feira, 25 de outubro de 2019






A Carícia Perdida



Sai-me dos
dedos a carícia sem causa,
Sai-me dos dedos... No vento, ao passar,
A carícia que vaga sem destino nem fim,
A carícia perdida, quem a recolherá?
Posso amar esta noite com piedade infinita,
Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, andará... andará...
Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
Se estremece os ramos um doce suspirar,
Se te aperta os dedos uma mão pequena
Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.
Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
No vento fundida, me reconhecerás?




Alfonsina Storni, poetisa argentina (1892-1938).




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 21 de outubro de 2019



Dia da Maça (Apple Day)






As Maças


Da alma só sei o que sabe o corpo:
onde a esperança e a graça
aspiram ao ardor
da chama é a morada do homem.
Vê como ardem as maças
na frágil luz de inverno
uma casa devia ser
assim: brilhar ao crepúsculo
sem usura nem vileza
com as maças por companhia.
Assim: limpa, madura.


Eugenio de Andrade




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 17 de outubro de 2019






Uma Voz na Pedra

Não sei
se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.




António Ramos Rosa, poeta português (1924- 2013).









Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 15 de outubro de 2019








Ruas da Cidade




Na noite calada e quieta como um grande segredo,
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.

Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
o frio, e os altos prédios fechados,
e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.

E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
como pálpebras que se vão fechar.
E o torpor saindo de todas as coisas
e pairando no ar, como um desmaio iminente...

Só eu ainda tenho passos para andar
e uma não sei que ternura
para todos que estão, para lá das paredes
adormecidos e descuidados
à morte que espreita escondida no mistério da noite...

Em que casa e andar estará dormindo
aquela de quem não sei o nome nem a vida,
mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo
quando nos cruzamos esta manhã?
Nesse momento,
ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos
das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam
ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro
Hoje é um dia de glória!
Mas tão estranho me pareceu
aquele milagre entre dois desconhecidos,
que nem voltei a cabeça para trás...
Agora este desânimo sem nome
de quem traiu um dia inteiro de vida
e teima ir pela noite dentro
à espera nem sabe de quê ...

De tantas horas iguais estou farto!

Mas ao fim e sempre a mesma esperança:
"um dia virá..."
E eu que tenho a vida desarrumada
como se fosse um milionário bêbado,
ergo-me e saio para a rua deslumbrado
e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.
E vai a coisa tão certa como uma religião,
quanto pressinto que me olham de todas as caras
como se espiassem um louco...
Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?

E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
Ah, um dia, quando a morte chegar,
hei de erguer para ela os meus olhos molhados,
e hei de contar-lhe a indiferença do mundo
e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
Assim como um menino fazendo queixas a sua mãe.




Manuel da Fonseca, escritor português (1911- 1993).






Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 14 de outubro de 2019







Agora ar é ar e coisa é coisa: traço
nenhum da terra celestial seduz
nossos olhos sem ênfase onde luz
a verdade magnífica do espaço.

montanhas são montanhas; céus são céus -
e uma tal liberdade nos aquece
que é como se o universo uno, sem véus,
total, de nós(somente nós) viesse

sim; como se, despertas do torpor
do verão, nossas almas mergulhassem
no branco sono onde se irá depor
toda a curiosidade deste mundo
(com júbilo de amor) imortal e a coragem
de receber do tempo o sonho mais profundo



E. E. Cummings, poeta estadunidense (1894- 1962).






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