quinta-feira, 7 de março de 2019





Ocaso no Mar


O céu, a valva azul de uma concha semelha,
De que outra valva é o mar ouriçado de escamas.
No ponto de junção o sol — molusco em chamas
Do abismo estende no ar a incendida centelha.

Listões de intenso azul, raias de cor vermelha,
Grandes manchas de opala, arabescos e lhamas,
Da luz todos os tons, de cor todas as gemas
Vibram na valva azul que a valva verde espalha.

Mas todo esse fulgor esmaece e se apaga,
Tímido, o olhar do sol boia de vaga em vaga,
Porque uma sombra investe a sua concha enorme.

É a noite: ... Como um polvo insidioso, se eleva,
Desenrola os seus mil tentáculos de treva...
E o sol, vendo-o crescer, fechas as valvas e dorme.


Artur de Sales, poeta, tradutor e escritor brasileiro (1879-1952)





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domingo, 3 de março de 2019





Conheço o Sal

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousada em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.



Jorge de Sena





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sábado, 2 de março de 2019






Velha Canção



Não penses que não te espero
na aparente indiferença.
Esta fingida descrença
só disfarça desespero.

Se a falsa máscara fria
pudesse quebrar esta ânsia
saberias que a constância
é meu pão de cada dia.

Um pudor duro e severo
esperar desesperado
é o que nutre este pecado
de querer como te quero.

Destarte - tímido louco -
não ouso sondar tua alma
e nesta insofrida calma
dia a dia morro um pouco.



(Menotti Del Picchia)

In Casa Menotti Del Picchia





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sexta-feira, 1 de março de 2019





As  Mulheres


Dei a maçã aos lábios nus de Adão.
Na força de Sansão fui seu desarme.
Salomão dava o céu para alcançar-me.
Não cobrei por Jesus beijar-me as mãos.
Conquistei Grécia e Tróia, heróis da Raça.
Lesbos de amor, cantei a eterna senda.
Dei-me a César e à morte em oferenda.
Roma de horror, fui eu a mais devassa.
Tive Bizâncio, Justiniano, ao tê-lo.
Mil e uma noites li-me sem ter fim.
Nenhuma teve a China além de mim.
Perdi Tristão nos ecos do castelo.
Montei na noite nua por inteiro.
Nasci gérmen do Papa e da peçonha.
Reinei por Luís em meus lençóis e fronhas.
A Rússia foi meu leito e meu império.
Os segredos da Guerra ouvi no leito.
De tudo ao rei, que nem quis mais coroa.
Posei pra ti, mein Führer, rindo à toa.
Carrega-me, Argentina, no teu peito!
Não traí Sartre: a fêmea também voa.
Hollywood deu-me aos fãs e aos barbitúricos.
…Todas eu sou. Dos homens, tenho a loa
do sêmen vivo de seus olhos túrgidos.


Luís Antonio Cajazeira Ramos




Amanda com Photography




terça-feira, 26 de fevereiro de 2019






Se partires, não me abraces - a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces -

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém - longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

Se me abraçares, não partas.



Maria do Rosário Pedreira


Do livro O Canto do Vento nos Ciprestes





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domingo, 24 de fevereiro de 2019







Penélope



Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.


David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927- 1996).


Julia Borodina Photography


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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019





Alma a Sangrar


Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?!...



Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"





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