sábado, 2 de março de 2019






Velha Canção



Não penses que não te espero
na aparente indiferença.
Esta fingida descrença
só disfarça desespero.

Se a falsa máscara fria
pudesse quebrar esta ânsia
saberias que a constância
é meu pão de cada dia.

Um pudor duro e severo
esperar desesperado
é o que nutre este pecado
de querer como te quero.

Destarte - tímido louco -
não ouso sondar tua alma
e nesta insofrida calma
dia a dia morro um pouco.



(Menotti Del Picchia)

In Casa Menotti Del Picchia





Imagem: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 1 de março de 2019





As  Mulheres


Dei a maçã aos lábios nus de Adão.
Na força de Sansão fui seu desarme.
Salomão dava o céu para alcançar-me.
Não cobrei por Jesus beijar-me as mãos.
Conquistei Grécia e Tróia, heróis da Raça.
Lesbos de amor, cantei a eterna senda.
Dei-me a César e à morte em oferenda.
Roma de horror, fui eu a mais devassa.
Tive Bizâncio, Justiniano, ao tê-lo.
Mil e uma noites li-me sem ter fim.
Nenhuma teve a China além de mim.
Perdi Tristão nos ecos do castelo.
Montei na noite nua por inteiro.
Nasci gérmen do Papa e da peçonha.
Reinei por Luís em meus lençóis e fronhas.
A Rússia foi meu leito e meu império.
Os segredos da Guerra ouvi no leito.
De tudo ao rei, que nem quis mais coroa.
Posei pra ti, mein Führer, rindo à toa.
Carrega-me, Argentina, no teu peito!
Não traí Sartre: a fêmea também voa.
Hollywood deu-me aos fãs e aos barbitúricos.
…Todas eu sou. Dos homens, tenho a loa
do sêmen vivo de seus olhos túrgidos.


Luís Antonio Cajazeira Ramos




Amanda com Photography




terça-feira, 26 de fevereiro de 2019






Se partires, não me abraces - a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces -

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém - longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

Se me abraçares, não partas.



Maria do Rosário Pedreira


Do livro O Canto do Vento nos Ciprestes





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 24 de fevereiro de 2019







Penélope



Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.


David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927- 1996).


Julia Borodina Photography


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019





Alma a Sangrar


Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?!...



Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019






Dizem os ventos



Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses: as ondas já
Engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
Nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
As praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas
Que perseguiram os pombos e os morderam.
A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
À tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
Para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
Que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
De ervas com canela; e há compota de ameixas
E suspiros e um cobertor de lã na cama e eu
Estou assustada. A lua está apenas por metade,
A terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.



Maria do Rosário Pedreira





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 2 de fevereiro de 2019





VI

Outra coisa que o corpo há quem conheça.
Eu não. Somente nele me cumpro viva.
Poema, beijo, estrela, afago, intriga
só no corpo me são pés e cabeça.

E coração também que às vezes teça
razão de me saber mais que a medida
nessa trágica trama tão antiga
a que chamam ficar de amor possessa.

E é de novo poema, beijo, afago.
É de novo no corpo que te trago
A exótica festa da nudez,

E tudo quanto sinto e quanto penso
Toma corpo no corpo a que pertenço.
E aqui estou: de barro, como vês.


Rosa Lobato de Faria, escritora e atriz portuguesa (1932-2010).



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/