quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019






Dizem os ventos



Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses: as ondas já
Engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
Nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
As praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas
Que perseguiram os pombos e os morderam.
A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
À tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
Para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
Que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
De ervas com canela; e há compota de ameixas
E suspiros e um cobertor de lã na cama e eu
Estou assustada. A lua está apenas por metade,
A terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.



Maria do Rosário Pedreira





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 2 de fevereiro de 2019





VI

Outra coisa que o corpo há quem conheça.
Eu não. Somente nele me cumpro viva.
Poema, beijo, estrela, afago, intriga
só no corpo me são pés e cabeça.

E coração também que às vezes teça
razão de me saber mais que a medida
nessa trágica trama tão antiga
a que chamam ficar de amor possessa.

E é de novo poema, beijo, afago.
É de novo no corpo que te trago
A exótica festa da nudez,

E tudo quanto sinto e quanto penso
Toma corpo no corpo a que pertenço.
E aqui estou: de barro, como vês.


Rosa Lobato de Faria, escritora e atriz portuguesa (1932-2010).



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019







Acordar Tarde

Tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia


Al Berto, poeta e editor português (1948-1997).




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


quarta-feira, 9 de janeiro de 2019







Canção Báquica


Que fez calar a alegre voz?
Ressoai, canções licenciosas!
Bem-vindas, moças carinhosas
E esposas tão jovens que amáveis a nós!
As taças enchei sem tardança!
No vinho a espumar,
No fundo, o jogar
Vinde (e ouvi-las soar) cada aliança!
Cada taça se erga, de vez seja finda!
Bem-vindas, ó musas; Razão, sê bem-vinda!
Astro sagrado, arde tu, sol!
Como o lampião empalidece
Ao claro surgir do arrebol,
Assim o saber falso hesita e esvanece
Ante o imortal sol da Razão.
Bem-vindo sê tu, sol; vai-te negridão!



Aleksander Púchkin   Poeta e dramaturgo  1799–1837
(1825)




Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/


sábado, 29 de dezembro de 2018






O Anjo

Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas Ihe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem

à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.



Rainer Maria Rilke, poeta austríaco (1875-1926)


(Tradução: Augusto de Campos)




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018





Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogio


Manoel de Barros, poeta brasileiro (1916- 2014).





Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 15 de dezembro de 2018






XVII


Ignoro o que seja a flor da água
Mas conheço o seu aroma:
Depois das primeiras chuvas
Sobe ao terraço,
Entra nu pela varanda,
O corpo inda molhado
Procura o nosso corpo e começa a tremer:
Então é como se na sua boca
Um resto de imortalidade
Nos fosse dado a beber,
E toda a música da terra,
Toda a música do céu fosse nossa,
Até ao fim do mundo,
Até amanhecer.



Eugénio Andrade





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/