sábado, 24 de novembro de 2018





Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.

Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh’alma se asila.

Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.

Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como…
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.

Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas…
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.

Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas…

Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.

Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.

Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.

Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.

Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.

Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável…
ah! tristeza do Infinito!

Cruz e Sousa, poeta brasileiro (1861- 1898).



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 23 de novembro de 2018






Cristal 

Não procura nos meus lábios tua boca,
não diante da porta o forasteiro,
não no olho a lágrima.   

Sete noites acima caminha o vermelho ao vermelho,
sete corações abaixo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.

Paul Celan, poeta ucraniano-francês (1920-1970).

( tradução: Claudia Cavalcanti )





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quinta-feira, 22 de novembro de 2018





Agora ar é ar e coisa é coisa: traço
nenhum da terra celestial seduz
nossos olhos sem ênfase onde luz
a verdade magnífica do espaço.

Montanhas são montanhas; céus são céus -
e uma tal liberdade nos aquece
que é como se o universo uno, sem véus,
total, de nós(somente nós) viesse

Sim; como se, despertas do torpor
do verão, nossas almas mergulhassem
no branco sono onde se irá depor
toda a curiosidade deste mundo
(com júbilo de amor) imortal e a coragem
de receber do tempo o sonho mais profundo


E. E. Cummings


 Painting by Serge Marshennikov

Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 20 de novembro de 2018







20 de Novembro - Dia da Consciência Negra



África Mãe!

Tão escura a noite.
Tão escura a casa.
Barro e colmo...
Terra batida era a estrada.
Acordado o amor na noite casta.
Um grito! Um clamor.
O toque entoante de um tambor.
A fogueira ardia feita tocha.
A mulher sofria sua dor.
Germinou no seu ventre o AMOR!
No silencio eclodiu por fim,
Um choro infante e se fez festa.
A negra mulher à luz da noite deu.
Uma criança perfeita.
Um menino franzino,
Acetinada pérola negra, nacarada, das entranhas da negra eclodiu.
Era a delicadeza rosada de uma flor.
Milagre sublime de amor.
Bem hajas mãe preta por esta flor de pétalas macias,
Que de TI MULHER NASCEU!!!



Augusta Maria Gonçalves.20.11. 2018.




Art By Samere Tansley

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sábado, 3 de novembro de 2018





Carta a Meus Filhos

Os Fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.



Jorge de Sena, poeta e crítico literário português (1919-1978).

Art  By  Francisco de Goya - Senora Sabasa Garcia, 1811 at National Gallery of Art Washington DC


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segunda-feira, 29 de outubro de 2018





Poema do Silêncio

Silencio, cobre meu pensamento e o meu coração
Cobre o meu corpo do desejo dos homens
E a minha sombra da luz do sol
Cobre a te a lembrança dos meus passos
E o som da minha voz

Cobre a minha caridade e a minha fé
A vontade de morrer e também a de viver
Estende-te sobre o colorido das paisagens
Interpõe-te na minha respiração e no meu pestanejar
Cobre-me desde o início da minha concepção

Enrola-te no duplo de mim mesma
Transforma-me em fragmento de ti próprio,
Penetra no meu principio e no meu fim,
Cobre-me bem, com tanta amplitude e intensidade
Que possa eu ser esquecida
E me esquecer por toda a eternidade!



Adalgisa Nery, poeta, jornalista e política brasileira (1905-1980).




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quinta-feira, 25 de outubro de 2018






Eu não Voltarei

Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.


Juan Ramón Jiménez




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