segunda-feira, 20 de novembro de 2017




Nenhum de vós! 
Seja qual for o céu
que vos encobre! Seja qual for a Idade
que vos deu! Já nenhum me fascina,
ó seres de pedra e mármore e cristal!
Não estremeço de espanto ou de beleza.
Se tudo o que me coube foi morrer,
espero da Esperança a glória do irreal.

Se vos amo, não sei se vos cantei.
Se vos deifiquei, já vos esqueço.
Se vos medi para além do que vos meço,
para aquém vos deixei.


Como erguer-vos acima dos infernos
de pó e cinza que a paixão criou?
E chamei-lhes eternos!
Que rio de miséria os afogou?

Nenhum de vós! Se estive de joelhos,
hoje levanto o olhar. O que de vós rasteja
sobre a Terra, a podridão do instante,
a perdição dos vícios, a razão de cantar,
está nas palavras presas, nas cadeias
que os séculos soluçam, a arrastar...

Nenhum de vós agora me escraviza.
Tão pequenos, pequenos almocreves!
Crianças das extáticas, divisas
e de infinitos breves!

Nenhum de vós! Não sei que epopeias
e astros e mansões
vos erguestes acima das areias!

Arrepiem-se as trevas e o silêncio
Do desprezo que alargo,
dos nomes que soterro, do amargo
anel de ferro que os recolhe.

Nenhum de vós, nenhum merece
que vos olhe!

Quero os cânticos só para além de mim,
de além dos cataclismos.
De além morte, de além caudais
de mundos em fusão.

Quero ver Deus criar de novo a vida;
uma nova manhã, um sabor novo a relva,
a maresia, à primeira canção...
Os passos do amor na noite fresca,
a primeira e imprecisa solidão.

uero ver Deus, terrível, frente a frente.
Ver os primeiros lagos, ver os primeiros monstros,
ver-me de onde é que eu vinha.

Quero ver Deus criar de novo a Morte
e que a primeira morte seja a minha.



Natércia Freire
1967



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 19 de novembro de 2017





Amanhecer

Floresce, na orilha da campina,
esguio ipê
de copa metálica e esterlina.

Das mil corolas,
saem vespas, abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste, onde vão pousando
nas piritas que piscam nas ladeiras,
e no riso das acácias amarelas.

Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
Nuvem deslizam, despetaladas,
e altas, altas,
garças brancas planam.

Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã...


João Guimarâes Rosa
In Magma, 1936




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sábado, 18 de novembro de 2017




Amor como em Casa
Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.



Manuel António Pina, 

in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"




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quarta-feira, 15 de novembro de 2017




Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh'alma alcança quando, transportada,
sente, alongando os olhos deste mundo,
os fins do ser, a graça entresonhada.

Amo-te a cada dia, hora e segundo
A luz do sol, na noite sossegada
e é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.

Amo-te com a dor, das velhas penas
com sorrisos, com lágrimas de prece,
e a fé de minha infância, ingênua e forte.

Amo-te até nas coisas mais pequenas,
por toda vida, e assim DEUS o quiser
Ainda mais te amarei depois da morte.

Elizabeth Barrett Browning




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terça-feira, 14 de novembro de 2017





Os Sonhos

De repente acordo e vejo bem perto
De mim, colado quase ao meu, desnudo,
Também, cansado, inerte no veludo,
O corpo dela, sem censura, aberto

O coração, de sentimento incerto,
Às vezes, mesmo, indiferente a tudo.
De tanto vê-la assim me desiludo
E me entristeço sempre que desperto.

Sem esperança de acordar com ela,
Eu fico preso ao meu amor constante
E paro, e penso e sinto, num instante,

Quando ela dorme, assim, imóvel, bela:
...Eu dos seus sonhos estou tão distante,
Que nem parece que estou junto dela.



Abdias Sá 
(Poeta brasileiro), escrito em João Pessoa, 1981.



Painting By Alejandro Decinti Oyarzún

segunda-feira, 13 de novembro de 2017





Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera. 
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja. 
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos


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domingo, 12 de novembro de 2017




Despedida

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.



Cecília Meireles



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