sexta-feira, 6 de maio de 2022

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Balada da neve

 

 

Batem leve, levemente,

como quem chama por mim.

Será chuva? Será gente?

Gente não é, certamente

e a chuva não bate assim.

 

É talvez a ventania:

mas há pouco, há poucochinho,

nem uma agulha bulia

na quieta melancolia

dos pinheiros do caminho...

 

Quem bate, assim, levemente,

com tão estranha leveza,

que mal se ouve, mal se sente?

Não é chuva, nem é gente,

nem é vento com certeza.

 

Fui ver. A neve caía

do azul cinzento do céu,

branca e leve, branca e fria...

- Há quanto tempo a não via!

E que saudades, Deus meu!

 

Olho-a através da vidraça.

Pôs tudo da cor do linho.

Passa gente e, quando passa,

os passos imprime e traça

na brancura do caminho...

 

Fico olhando esses sinais

da pobre gente que avança,

e noto, por entre os mais,

os traços miniaturais

duns pezitos de criança...

 

E descalcinhos, doridos...

a neve deixa inda vê-los,

primeiro, bem definidos,

depois, em sulcos compridos,

porque não podia erguê-los!...

 

Que quem já é pecador

sofra tormentos, enfim!

Mas as crianças, Senhor,

porque lhes dais tanta dor?!...

Porque padecem assim?!...

 

E uma infinita tristeza,

uma funda turbação

entra em mim, fica em mim presa.

Cai neve na Natureza

- e cai no meu coração.

 

Augusto César Ferreira Gil

 

 

 

 

 

quinta-feira, 5 de maio de 2022

 

 

 


 

 

5 de Maio - Dia Mundial da Língua Portuguesa

 

É tão fundo o silêncio

 

É tão fundo o silêncio entre as estrelas.

Nem o som da palavra se propaga,

Nem o canto das aves milagrosas.

Mas lá, entre as estrelas, onde somos

Um astro recriado, é que se ouve

O íntimo rumor que abre as rosas.

 

 

 José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.

 

 

 

sábado, 30 de abril de 2022

 

 

 


 

Creio nos anjos que andam pelo mundo,

Creio na Deusa com olhos de diamantes,

Creio em amores lunares com piano ao fundo,

Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

 

Creio num engenho que falta mais fecundo

De harmonizar as partes dissonantes,

Creio que tudo eterno num segundo,

Creio num céu futuro que houve dantes,

 

Creio nos deuses de um astral mais puro,

Na flor humilde que se encosta ao muro,

Creio na carne que enfeitiça o além,

 

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

Na ocupação do mundo pelas rosas,

Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

 

 

Natália de Oliveira Correia foi uma intelectual, poeta e activista social açoriana, autora de extensa e variada obra publicada, com predominância para a poesia.

 

 

terça-feira, 26 de abril de 2022

 

 


 

 

Se por um instante Deus se esquecesse que sou uma marioneta de trapo e me presenteasse com um pouco mais de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo.

Daria valor às coisas não pelo que valem, mas pelo que significam.

Dormiria pouco, sonharia mais.

Entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos 60 segundos de luz.

Andaria quando os outros páram, acordaria quando os outros dormem.

Ouviria quando os outros falam e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate…

Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto não apenas o meu corpo, mas também a minha alma.

Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre gelo e esperava que nascesse o sol.

Pintaria com um sonho de Van Gogh as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que oferecia à Lua.

Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas…

Meu Deus, se eu tivesse um pouco mais de vida, não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas.

Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo Amor.

Aos Homens, provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar.

A uma criança dar-lhe-ia asas, mas teria de aprender a voar sozinha.

Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.

Tantas coisas aprendi com vocês Homens…

Aprendi que todo o mundo quer viver em cima de uma montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta.

Aprendi que quando um recém-nascido aperta com sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo de seu pai, o tem agarrado para sempre.

Aprendi que um Homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se.

São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me hão-de servir realmente de muito, porque quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer…

 

Gabriel Garcia Marquez