quarta-feira, 29 de novembro de 2017





Canção das mulheres

Que o outro saiba quando estou com medo, 
e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, 
mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, 
e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, 
porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, 
ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dóia idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco 
- em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo 
''Olha que estou tendo muita paciência com você!''

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, 
o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, 
o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, 
mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, 
nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, 
incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.


Lya Luft




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terça-feira, 28 de novembro de 2017




Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

Mario Quintana




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segunda-feira, 27 de novembro de 2017




II - O Meu Olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro
Heterónimo de Fernando Pessoa



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domingo, 26 de novembro de 2017




Uma Ausência de Mim

Uma ausência de mim por mim se afirma.
E, partindo de mim, na sombra sobre
o chão que não foi meu, na relva simples
o outro ser que sonhei se deita e cisma.

Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro
— e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,
os bichos sob o sol, a chuva e tudo —
ou foi o sonho dos demais que sonho?

A epiderme da vida me vestiu,
ou breve imaginar de um ócio inútil
ergueu da sombra a minha carne, ou sou

um casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.


Alberto da Costa e Silva, 
in 'A Linha da Mão'





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sábado, 25 de novembro de 2017






Anjos do Apocalipse - II 

Este é o anjo do apocalipse
com a sua espada
filva

funda

Embainhada na nossa
vagina

Ei-lo que rompe
o espaço
com a espada

com o esperma

Anjo da justiça
com o seu pénis

Caminham com estandartes
Com espadas e paixão
Numa erecção calada

São os anjos do ódio
com a sua raiva
alada

Vestem o corpo
com o brilho das armaduras
e do vidro

e só depois voam...

Os arcanjos do sonho
com as suas asas
nocturnas de veludo

São os arcanjos
do sonho

Usando comigo
a sua espada
de aço


Maria Teresa Horta


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sexta-feira, 24 de novembro de 2017




Ironia de Lágrimas

Junto da morte é que floresce a vida!
Andamos rindo junto a sepultura.
A boca aberta, escancarada, escura
Da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida
Do nosso corpo, Fausto sem ventura…
Ela anda em torno a toda criatura
Numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas
E a marteladas lúgubres e tredas
Das Ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos mundos risonhos!
Lá vem a loba que devora os sonhos,
Faminta, absconsa, imponderada cega!


João da Cruz e Sousa





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quinta-feira, 23 de novembro de 2017




Elogio da Distância


Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno




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