sexta-feira, 1 de setembro de 2017




de tanto pisar os caminhos do mundo
os meus pés estão sangrando
e o meu coração ferido
como o chão gretado

olhos fitos na distância
avanço
rumo à fímbria do horizonte

de meus lábios brota um canto
como uma flor
nascida no agreste de meu peito

meu coração está ferido
e contudo puro e livre
como o canto que brota de meus lábios
ou o orvalho antes de tocar a terra


Aluysio Mendonça Sampaio
Brasil (Sergipe 1926;
         São Paulo 2008



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quinta-feira, 31 de agosto de 2017




O Ideal


Nunca poderá ser pálida bonequinha,
Produto sem frescor qual manequim de molas,
Pés para borzeguins, dedos p'ra castanholas,
Que há-de satisfazer almas como esta minha.

Eu deixo a Gavarni, poeta de enfermaria,
Seu rebanho gentil de belezas cloróticas,
Porque nunca encontrei n'essas plantas exóticas
A rubra flor que anela a minha fantasia.

Meu torvo coração, na angústia que o oprime,
Sonha Lady Macbeth, alma fadada ao crime,
Pesadelo infernal que um Ésquilo criou;

E contigo também, ó Noite grandiosa,
Filha de Miguel-Anjo, esfinge misteriosa,
Sereia colossal que algum Titã gerou!

Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães



Fonte: http://www.citador.pt/

quarta-feira, 30 de agosto de 2017




A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

Almada Negreiros



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terça-feira, 29 de agosto de 2017




Vida

Choveu! E logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliáceas.
Foi bem fecunda, a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liliáceas!
Calquem. Recalquem, não o afogam.
Deixem. Não calquem. Que tudo invadam.
Não as extinguem. Porque as degradam?
Para que as calcam? Não as afogam.
Olhem o fogo que anda na serra.
É a queimada... Que lumaréu!

Podem calcá-lo, deitar-lhe terra,
Que não apagam o lumaréu.
Deixem! Não calquem! Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta além.
_ E se arde tudo? _ Isso que tem?
Deitam-lhe fogo, é para arder...

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'



Art By James V Griffin

sexta-feira, 18 de agosto de 2017





Voz Interior

(A João de Deus)

Embebido n'um sonho doloroso,
Que atravessam fantásticos clarões,
Tropeçando n'um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso...

Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céus arroja os seus cachões,
Através d'uma luz de exalações,
Rodeia-me o Universo monstruoso...

Um ai sem termo, um trágico gemido
Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrível, monótono vaivém...

Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem!

Antero de Quental, in "Sonetos"




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quinta-feira, 17 de agosto de 2017




"Ouço os teus passos, Senhor, na praia da minha vida;

No solitário silêncio, no ar do Verão, os planetas e as estrelas do céu fitam com fixo olhar.

A corrente do pensamento flui gentilmente, gentilmente no meu coração.

Os meus olhos estão vigilantes como pássaros sedentos.

Abri os ouvidos nas profundezas do meu coração.

Em que abençoada manhã desfalecerás no tabernáculo da minha alma?

Esquecerei toda a alegria e toda a dor, mergulhado nas águas da felicidade."


Rabindranath Tagore






Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 16 de agosto de 2017





A Vida


Ó grandes olhos outomnaes! mysticas luzes!
Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d'Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n'um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!

    Ó Quarta-feira de Trevas!

Vossa luz é maior, que a de trez luas-cheias:
Sois vós que allumiaes os prezos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outomnaes, cheios de Graça!
Olhos accezos como altares de novena!
Olhos de genio, aonde o Bardo molha a penna!
Ó carvões que accendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no mar andam botando as linhas...
Ó pharolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pyrilampos a allumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligencia pela serra!
Ó Extrema-Uncção final dos que se vão da Terra!
Ó janellas de treva, abertas no teu rosto!
Thuribulos de luar! Luas-cheias d'Agosto!
Luas d'Estio! Luas negras de velludo!
Ó luas negras, cujo luar é tudo, tudo
Quanto ha de branco: véus de noivas, cal
Da ermida, velas do hiate, sol de Portugal,
Linho de fiar, leite de nossas mães, mãos juntas
Que têm erguidas entre cyrios, as defuntas!
Consoladores dos Afílictos! Ó olhos, Portas
Do Céu! Ó olhos sem bulir como agoas-mortas!
Olhos ophelicos! Dois soes, que dão sombrinha...
Que são em preto os Olhos Verdes de Joanninha...
Olhos tranquillos e serenos como pias!
Olhos Christãos a orar, a orar Ave Marias
Cheias de Luz! Olhos sem par e sem irmãos,
Aos quaes estendo, toda a hora, as frias mâos!
Estrellas do pastor! Olhos silenciozos,
E milagrozos, e misericordiozos,
Com os teus olhos nunca ha noites sem luar,
Mesmo no inverno, com chuva e a relampejar!
Olhos negros! vós sois duas noites fechadas,
Ó olhos negros! como o céu das trovoadas...

Mas dize, meu amor! ó Dona de olhos taes!
De que te serve ter uns astros sem eguaes?
Olha em redor, poiza os teus olhos! O que ves?
O mar a uivar! A espuma verde das marés!
Escarros! A traição, o odio, a agonia, a inveja!
Toda uma cathedral de lutas, uma igreja
A arder entre clarões de coleras! O orgulho
Insupportavel tal o meu, e o sol de Julho!
Jezus! Jezus! quantos doentinhos sem botica!
Quantos lares sem lume e quanta gente rica!
Quantos reis em palacio e quanta alma sem ferias!
Quantas torturas! Quantas Londres de mizerias!
Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças!
Quantos suores sem proveito! quantas taças
A trasbordar veneno em espumantes boccas!
Quantos martyrios, ai! quantas cabeças loucas,
N'este macomio do Planeta! E as orfandades!
E os vapores no mar, doidos, ás tempestades!
E os defuntos, meu Deus! que o vento traz á praia!
E aquella que não sae por ter uzada a saia!
E os que sossobram entre a vaidade e o dever!
E os que têm, amanhã, uma lettra a vencer!
Olha essa procissão que passa: um torturado
De Infinito! Um rapaz que ama sem ser amado,
E para ser feliz fez todos os esforços...
Olha as insomnias d'uma noite de remorsos,
Como dez annos de prizão maior-cellular!
Olha esse tysico a tossir, á beira-mar...
Olha o bébé que teve Torre de coral
De lindas illuzões, mas que uma aguia, afinal,
Devorou, pois, ao vel-a ao longe, avermelhada,
Cuidou, ingenua! que era carne ensanguentada!
Quantos são, hoje? Horror! A lembrança das datas...
Olha essas rugas que têm certos diplomatas!
Olha esse olhar que têm os homens da politica!
Olha um artista a ler, soluçando, uma critica...
Olha esse que não tem talento e o julga ter
E aquelle outro que o tem... mas não sabe escrever!
Olha, acolá, a Estupidez! Olha a Vaidade!
Olha os Afflictos! A Mentira na Verdade!
Olha um filho a espancar o pae que tem cem annos!
Olha um moço a chorar seus crueis desenganos!
Olha o nome de Deus, cuspido n'um jornal!
Olha aquelle que habita uma Torre de sal,
Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas,
Mas de outras que chorou, de lagrymas salgadas!
Olha um velhinho a carregar com a farinha
E o filho no arraial, jogando a vermelhinha!
Olha a sair a barra a galera _Gentil_
E a Anna a chorar p'lo João que parte p'ro Brazil!
Olha, acolá, no caes uma outra como chora:
É o marido, um ladrão, que vae «p'la barra fóra!»
Olha esta noiva amortalhada, n'um caixão...

Jezus! Jezus! Jezus! o que hi vae de afflicção!

Ó meu amor! é para ver tantos abrolhos,
Ó flor sem elles! que tu tens tão lindos olhos!
Ah! foi para isto que te deu leite a tua ama,
Foi para ver, coitada! essa bola de lama
Que pelo espaço vae, leve como a andorinha,
A Terra!

    Ó meu amor! antes fosses ceguinha...

António Nobre, in 'Só'


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